domingo, 7 de março de 2010

O SUJEITO CEREBRAL E O MOVIMENTO DA NEURODIVERSIDADE




O termo neurodiversidade foi cunhado pela socióloga australiana e portadora da síndrome de Asperger Judy Singer, em 1999, em um texto com o sugestivo título de Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um "problema sem nome" para a emergência de uma nova categoria de diferença (Singer 1999). Mas o que é a neurodiversidade, quem são os indivíduos que se referem a esse termo como critério de identificação?

Como lemos no início, "neurodiversity" — "neurodiversidade" — em Wikipedia e nas dúzias de sites dedicados ao movimento,1 é um termo que tenta salientar que uma "conexão neurológica" (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente) não é uma doença a ser tratada e, se for possível, curada. Trata-se antes de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais, entre outras). Os indivíduos autodenominados "neurodiversos" consideram-se "neurologicamente diferentes", ou "neuroatípicos". Pessoas diagnosticadas com autismo, e mais especificamente portadores de formas mais brandas do transtorno — os chamados autistas de "alto funcionamento" — freqüentemente diagnosticados com a síndrome de Asperger, são a força motriz por trás do movimento. Para eles, o autismo não é uma doença, mas uma parte constitutiva do que eles são. Procurar uma cura implica assumir que o autismo é uma doença, não uma "nova categoria de diferença humana", usando a expressão de Singer (1999:63).

Para a socióloga australiana (Singer 1999), o aparecimento do movimento de neurodiversidade tornou-se possível por vários fenômenos: principalmente a influência do feminismo, que forneceu às mães a autoconfiança necessária para questionarem o modelo psicanalítico dominante que as culpava pelo transtorno autista dos filhos; a ascensão de grupos de apoio aos pacientes e a subseqüente diminuição da autoridade dos médicos, possibilitadas, sobretudo, pelo surgimento da Internet, que facilitou tanto a organização dos grupos, como a livre transmissão de informações sem mediação dos médicos; finalmente, o crescimento de movimentos políticos de deficientes, movimentos de autodefesa e auto-advocacia de deficientes, especialmente de surdos, que estimulou a auto-representação da identidade autista.

Se a neurodiversidade ou a "neuroatipicidade" é uma doença, então a "neurotipicidade" também o é, argumentam os adeptos do movimento. Nesse sentido, vale a pena conferir na web o irônico site do Instituto para o estudo dos neurologicamente típicos (Institute for the Study of the Neurologically Typical) (http://isnt.autistics.org). O autor do "instituto" confessa que criou o site como expressão do "ultraje autista", depois de conferir que aquilo que é escrito por "especialistas" e "profissionais" sobre o autismo é "arrogante, insultante e simplesmente errado". No site, a "síndrome neurotípica" é tida como "um transtorno neurobiológico caracterizado pela preocupação com questões sociais, delírios de superioridade e obsessão pela conformidade. Além disso, os indivíduos neurotípicos (NT) "freqüentemente assumem que sua experiência do mundo é a única ou a única correta. Neurotípicos acham difícil ficar sozinhos e, em geral, são aparentemente intolerantes às menores diferenças nos outros".

O objetivo deste site é, obviamente, desconstruir a retórica pró-cura presente, como veremos ao longo deste artigo, em muitas organizações de pais de filhos autistas e profissionais. Visa-se mostrar que o absurdo de tentar curar ou diagnosticar a "normalidade" — que aparece aqui na versão cerebral de "neurotipicidade" — é semelhante ao absurdo de se buscar curar o autismo. Por que nos chocariam as tentativas de curar a "neurotipicidade" (possibilidade apresentada ironicamente no site), enquanto aceitamos sem pensar a retórica pró-cura de associações como Cure Autism Now, Defeat Autism Now ou Autism Speaks que, no fundo, defendem uma determinada "normalidade" ou "tipicidade" cerebral? Curar um neurotípico seria o mesmo que curar um indivíduo gay, negro, canhoto ou autista, afirmam os defensores da neurodiversidade. Para eles, o autismo não é como um câncer que deva ser curado, estando mais para as tentativas de corrigir a sinistralidade ou a homossexualidade (Harmon 2004a, 2004b, 2004c). Assumir o autismo como diferença libera os indivíduos do desejo ou da necessidade da cura, o que resulta muito importante em uma época na qual existem grandes chances de dispormos, em breve, de testes genéticos que poderão impedir crianças autistas de nascer.

Em torno dos padrões autísticos de pensamento e de interesses, vem aumentando o número de páginas da internet que exprimem a "cultura autista" no seio do movimento da neurodiversidade. Ao clicarmos o termo "cultura autista" e "neurodiversidade" no Google, encontramos uma quantidade enorme de sites que afirmam a identidade autista (e mais especificamente Aspie, em referência à síndrome de Asperger) e celebram essa subcultura. Eles incluem desde indicações de literatura de ficção e especializada sobre os mais variados aspectos do espectro do transtorno até organizações de apoio, blogs e mecanismos de chat que facilitam a interação entre autistas, esclarecem elementos do transtorno, ajudam a compartilhar experiências e até mesmo a encontrar amigos ou futuros companheiros e cônjuges. Para a famosa autista Temple Grandin, o casamento entre autistas é natural, visto que "os casamentos funcionam melhor quando duas pessoas com autismo se casam ou quando a pessoa se casa com um deficiente ou com um parceiro excêntrico... Eles se atraem porque seus intelectos trabalham em um comprimento de onda similar" (apud Silberman 2001).

O objetivo fundamental dos movimentos é promover a conscientização e o empowerment da cultura autista, o que inclui a comemoração do "Dia do Orgulho Autista" (Autistic Pride Day) que, inspirado no Dia do Orgulho Gay, é festejado no dia 18 de junho como celebração da neurodiversidade dos autistas.2 Desde 2005 o "Dia do Orgulho Autista" teve os seguintes temas: "Aceitação, não cura" (2005); "Celebrando a neurodiversidade" (2006); "Autismo fala. É hora de escutar" (2007). No Brasil, o recém-criado movimento Orgulho Autista Brasil integra uma rede de países que comemora a neurodiversidade nessa data (Lage 2006; Caversan 2005). Prova disto é o fato de que o principal evento mundial do "Dia do Orgulho Autista" de 2005 foi realizado em Brasília. Na contramão, encontram-se, também no Brasil, as associações de pais e profissionais que buscam a cura para o autismo. As mais conhecidas são AMA (Associação de Amigos de Autistas: www.ama.org.br), AUMA (Associação de Amigos da Criança Autista: www.autista.org.br).3

A proliferação nos últimos anos dos movimentos da neurodiversidade e o aumento de sua exposição na mídia têm intensificado o embate político entre os ativistas do movimento autista e as organizações de pais e profissionais dos grupos pró-cura.4 Recentemente, os debates subiram de temperatura de forma vertiginosa. Em 2004, a publicação por Amy Harmon de uma série de artigos no New York Times sobre a neurodiversidade deu grande visibilidade ao movimento (Harmon 2004a, 2004b, 2004c). Neles, é apresentada a posição dos ativistas autistas que consideram o autismo como parte essencial do que eles são e se opõem à cura. Apesar de fazer referência também às críticas de pais e especialistas ao movimento, os artigos provocaram uma série de depreciações dos movimentos pró-cura e de pais de crianças autistas.

Numa emotiva carta aberta ao New York Times, Kate Weintraub, mãe de uma criança autista, critica a parcialidade da visão apresentada como favorável à neurodiversidade. Sua posição pode ser resumida na frase "Autismo é um transtorno, não é um estilo de vida ou apenas um jeito diferente de ser" (Weintraub s/d). Ela também se refere às acusações de alguns ativistas autistas que culpabilizam os pais pela situação dos filhos, os quais deveriam ser, para os mais radicais, afastados dos genitores. Os pais são "ridicularizados como 'obcecados pela cura' (curebies)5 e retratados como escravos da conformidade, tão ansiosos para que seus filhos pareçam normais que eles não conseguem respeitar sua forma de comunicação" (Harmon 2004c). Essas observações provocaram a ira de Weintraub e de outros membros dos movimentos pró-cura, para quem os ativistas "não deveriam falar como se meus filhos fossem como eles e necessitassem ser salvos de seus pais" (Weintraub s/d). Embora os movimentos autistas possuam uma retórica claramente antipsicanalista, ecoam em algumas afirmações o tom "culpabilizante" que caracteriza a visão psicanalítica sobre o autismo (Dolnick 1998). Se a psicanálise acusava os pais de crianças autistas de serem frios, obsessivos e mecânicos no tipo de atenção dada aos filhos,6 o movimento de autistas acusa-os de serem intolerantes com seu modo de ser (neuro)diferente, de não amá-los do jeito que eles "são" e de quererem falar em nome deles. Assim, os pais não estariam aflitos por causa do autismo do filho, mas pela perda do filho que esperavam e esperam poder ter (Sinclair 1993). A "parentectomy" proposta por Bettelheim ecoa nas acusações do movimento autista.

Um dos pontos mais conflitantes diz respeito à terapia cognitiva ABA (Análise Comportamental Aplicada — Applied Behavior Analysis), que para muitos pais constitui a única terapia que permite às crianças autistas realizarem algum progresso no estabelecimento de contato visual e em certas tarefas cognitivas. Para os ativistas autistas, a terapia reprime a forma de expressão natural dos autistas (Dawson 2004). A questão é acirradamente debatida no mundo anglo-saxão, já que muitos pais estão lutando na Justiça para conseguir que governos e companhias de seguros de saúde paguem pela terapia, cujo custo é muito elevado. Desse modo, os argumentos defendidos pelos movimentos da neurodiversidade de que o autismo não é uma doença e as tentativas de cura são uma afronta aos autistas, e podem fornecer razões para que seja recusado o financiamento das terapias. Este fato provoca a irritação de pais e profissionais que lutam pela implantação e pelo custeio público das terapias.

O assunto chegou aos tribunais. Várias famílias canadenses entraram em 2004 com uma ação judicial argumentando que o governo deveria pagar a terapia ABA para seus filhos por ser "medicamente necessária". Trata-se do caso Auton vs. British Columbia. Michelle Dawson, ativista autista canadense,7 questionou a ética da terapia ao ser chamada como testemunha. Este depoimento foi citado pela Suprema Corte canadense na sua decisão contra as famílias de filhos autistas.8 Situações como essas vêm elevando enormemente a temperatura do debate. De um lado, as famílias de autistas e suas lutas por acesso aos tratamentos e às terapias comportamentais — que implicam reconhecer o autismo como uma doença (principalmente com causas genéticas e/ou cerebrais) — para as quais os movimentos de autistas com sua retórica anticura e pró-neurodiversidade representam um ultraje às suas reivindicações. De outro lado, os ativistas autistas que consideram as terapias pró-cura um passo adiante na negação e na intolerância da diferença e da (neuro)diversidade e na implantação de políticas eugênicas e genocidas. Vejamos estes aspectos mais pormenorizadamente.


FONTE
http://neurovisao.zip.net/

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