terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A MUSICALIDADE DO AUTISMO EM RIAN


Era uma experiência incrível presenciar os sentimentos mobilizados em Rian quando ele ouvia a música que gostava. Suas tendências para a musicalidade eram imensas. Suas reações me impressionavam.
Às vezes, em algumas de nossas sessões, Rian ficava entretido, sentado em frente ao aparelho de som. Deixava-se ver e sentir suas reações por alguns momentos. Aproveitava todo este preâmbulo aberto por ele. A música entrava em seus ouvidos e todo o seu corpinho de criança acompanhava o som. Rian parecia um maestro regendo uma sinfonia. Adorava mexer seus dedinhos de acordo com o movimento da música. Não olhava para ninguém, não gostava de responder aos chamados e se deixava ficar assim por longo tempo; numa anímica situação infantil de quem começa a criar brincadeiras e vivê-las em memórias sem fim.
Seus pais gostavam da atividade e a seleção musical de Rian havia se tornado uma rotina naquela casa. Orientavam suas filhas para tal procedimento, quando percebiam que Rian acordava mais agitado. Tal atitude era um ótimo remédio para a preservação da tranqüilidade de Rian.
Suas músicas preferidas eram cantadas por Roberto Carlos, Elvis Presley, entre outros do gênero. Por outro lado, músicas clássicas e dos anos sessenta.
Com o tempo, começou a apreciar também música popular brasileira e seu repertório se ampliava. Era estranho imaginar, mesmo sendo uma psicóloga, como Rian teria tal diversidade musical. Como poderia acontecer aquilo? O que víamos era surpreendente. Todos os seus sentidos ficavam voltados para o som; a sua musicalidade era intensa, a melodia e o ritmo podiam ser percebidos no compasso dos seus atos infantis. Olhos, ouvidos, boca e dedos acompanhavam o movimento musical.


****


Inúmeras foram as vezes que já na entrada do apartamento, escutava músicas típicas de Rian e que hoje me vêm à memória:

“Quando a velhice chegar, eu não sei se terei tanto amor pra lhe dar’’
“Por isso corro demais, corro demais, só pra te ver meu bem”
“Detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes pra esquecer”...

ou

“Kiss me quick , Kiss me quick”.
“Love me tender, love me truly”.
“Oh! Carol! Oh! Carol”!

Quando comecei a presenciar sua sensibilidade para a música, Rian ainda não falava e era muito pequeno. Mas seus lábios costumavam fazer movimentos como se estivesse cantando baixinho. Não sabia se Rian tinha a capacidade de memorizar todo o repertório das músicas que gostava, mas sabia que a maneira como balbuciava tais canções, fazia-me pensar a esse respeito. Sua sincronia com a música era fantástica. Fazia-me meditar novos e bons presságios no seu tratamento! Música é alegria, música é busca. Estaria eu, mais uma vez, a aprender, a buscar, a abrir as portas do mundo de Rian.
Com o tempo, ele começou a adquirir alguns sons pela fala e, quando ia ouvir suas músicas, gostava de repetir os refrões.
Lembro-me de presenciar muitas crianças, ainda bebês, terem reações semelhantes as de Rian, com relação à música. O que ele fazia desde pequeno era visto também e da mesma maneira em crianças que tive o prazer de acompanhar. Os dedinhos que se mexiam ao som de uma música que acalmava, como se fossem pequenos maestros e a situação calma e entretida com que ficavam durante muito tempo. Eram crianças extremamente saudáveis e em nenhum momento poderiam precisar de um acompanhamento especializado.
As reações de Rian se pareciam muito com essas crianças e em nada poderia cogitar uma reação autística de isolamento. Suas reações eram de puro sentimento e emoção. Entendia cada vez mais sua extrema sensibilidade e pensava até em suas manifestações de birra. Seriam apenas manifestações previsíveis de um quadro sindrômico, ou reações extremas de uma sensibilidade e sentidos altamente abertos e frágeis diante dos estímulos do mundo que o rodeia? Suas birras também poderiam ser interpretadas? Em determinados momentos, tais birras eram, no meu entender, um baixíssimo limiar de tolerância à frustração e em outros momentos não. Nesses momentos, creio eu, trabalhava os sintomas de um quadro nosológico e, quando via o meu erro, voltava a ver Rian e interpretar suas reações como uma comunicação.
O prazer pela música me fazia ver isto. Rian tinha desejos, vontades e sensações de uma criança normal e eu precisaria acreditar no contexto vivido. Gosto de pensar que todas as pessoas procuram a necessidade de serem saudáveis e felizes consigo. Com Rian não era diferente. A necessidade de um autista de se afastar de um mundo visto como muito ameaçador não era uma regra constante em sua vida. Ele também sabia tirar proveito do que este mesmo mundo ameaçador poderia oferecer de bom. Ele sabia viver plenamente também.

belo horizonte, 30 de março de 1996...
silvania mendonça almeida margarida

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