domingo, 23 de janeiro de 2011

Escritor norueguês fala sobre os desafios de educar um filho autista.

Há 12 anos, este jornalista e escritor norueguês descobriu que o filho mais novo era diferente. Confrontado com a escassa ajuda que encontrou no universo que lhe é mais próximo — o da literatura — inverteu o processo e escreveu uma longa carta que é também um testemunho de ângulo inovador sobre a vida quotidiana com uma criança autista. O resultado está nas 253 páginas de «Querido Gabriel», editado em Portugal pela Objectiva.


Este livro é uma carta de amor.
É sim.

É uma carta de amor cheia de compreensão e frustração, mas sem qualquer pena. O que o motivou para escrever esta que é a sua primeira obra? Foi o Gabriel? A sua família?
O Gabriel é o nosso quarto filho. Creio que uma das reacções mais normais de qualquer pai é tentar compreender a personalidade das suas crianças tão bem quanto possível e eu e a minha mulher tentámos fazê-lo com todos os nossos filhos. No caso do Gabriel, percebemos desde cedo que ele era uma criança diferente. Ao início, acreditei que isso se devia ao facto de ele se desenvolver ao seu próprio ritmo. Pelo contrário, a minha mulher viu que havia algo de errado, mas eu não queria aceitar esse facto e pensava: «temos de deixar o tempo passar e tudo se há-de resolver». Quando ele fez três anos, os médicos diagnosticaram-no como portador de autismo infantil – mais tarde foi detectada a hiperactividade – e, imediatamente, comprei todos os livros que podia sobre o assunto. Naturalmente que já tinha ouvido a palavra ‘autismo’ e tinha visto o filme «Rain Man», mas estas eram as minhas únicas ligações a esta condição. E não podia sequer imaginar que o meu filho estava condenado a ser uma figura como a que é personificada pelo Dustin Hoffman no filme. Então comecei a ler tudo o que podia, mas a maior parte do material é composto por literatura médica inacessível e pouco me ajudou. Isto porque nenhum livro ou material conseguia explicar-me exactamente o que é o autismo e como lidar com ele na vida de todos os dias. O meu livro começou como uma tentativa de compreender o que tinha o meu filho de tão especial e acabou por ser muito natural utilizar a linguagem para o fazer, porque esta é a minha área profissional.



E porquê uma carta?
De início, não sabia que forma dar a este texto. Devia escrever um romance sobre o Gabriel? Um diário? Todas as estratégias que tentei revelaram-se perigosas porque, um dia, o Gabriel vai ler isto e tenho de pensar como ele vai reagir. Sentirá que o traí, que o transformei num objecto? Não quero que isso aconteça e daí todos os cuidados. Finalmente, decidi escrever-lhe uma carta, porque isso ‘forçar-me-ia’ a escrever do modo que pretendo, dirigindo-me ao meu filho. Resta acrescentar que não planeei que esta carta se transformasse num livro. Era mais um exercício de expressão, através do Gabriel e de tudo o que ele representa. Durante vários anos escrevi algumas coisas até que a carta que eu tinha escrito em mente acabou por tomar forma. Entretanto, mostrei o meu trabalho à minha mulher e chegámos à conclusão de que poderia ter utilidade para outras pessoas.



De que forma?
Este processo foi muito lento. Primeiro, tive de me colocar na pele do Gabriel, depois tive de me colocar na minha própria pele, no que respeita às reacções, mais tarde tive de perceber que talvez este material fosse suficientemente bom para ser publicado e só depois de o livro sair é que cheguei à conclusão de que poderá ser útil a terceiros. É que muitas pessoas têm a mesma reacção que eu quando os seus filhos são diagnosticados com autismo: tentam perceber o que é isto e não encontram nada que os ajude.



Quando diz ‘nada’ refere-se a quê? À vida quotidiana da família?
A minha experiência diz-me que existem duas categorias de livros que abordam estes temas. A primeira é a abordagem científica ou médica, a segunda são livros escritos por pessoas autistas. Neste caso, quase todos alegam que foram ‘curados’ o que, em meu entender, está longe da verdade. Podemos – tanto os autistas como as famílias – aprender a viver com o diagnóstico, mas isso está longe de uma ‘cura’, no sentido mais habitual da palavra. No livro digo que se nascermos sem alguns dedos não é impossível aprender a tocar piano, mas esses dedos nunca vão estar presentes. Não me senti confiante ao ler estes livros escritos por pessoas autistas ou com síndrome de Asperger porque dão a entender aos pais de que existe uma ‘cura’. Não é positivo dar falsas expectativas aos pais eles já têm dificuldades de sobra. Conheci muitas famílias que despenderam incontáveis quantidades de tempo e energia, tentando todas as estratégias possíveis e imaginárias, na procura encontrar uma ‘cura’: nutrição, psicologia e muitas outras coisas. E tudo apenas para, no fim, ficarem desapontadas porque a criança não se desenvolveu nem se ‘curou’ como gostariam que tivesse acontecido. Em minha opinião a cura do autismo é uma utopia.



Essas famílias não conseguem trabalhar com o que têm ou procuram alcançar algo que é inatingível?
A procura infundada por uma cura é um dos aspectos que mais me desagrada neste tipo de obras. Um outro ponto é a insistência de que a criança autista tem dentro de si, necessariamente, um «idiot savant» («idiota-sábio») e todas têm alguma super-capacidade, seja em astronomia, matemática ou outro campo qualquer…



É o «síndrome Rain Man»…
Precisamente. E esse facto não acontece em todos os casos ou, mais precisamente, em nenhum caso. Enquanto autistas, estas pessoas têm a capacidade de concentrar toda a sua atenção num determinado pormenor e, naturalmente, tornam-se muito boas nesse campo. Mas isso não deve ser confundido com um talento. Conheci muitos pais que se mostravam desapontados porque o seu filho autista não se tinha revelado um génio numa dada área. Quis escrever um livro que não se centrasse na utopia de uma cura ou na procura de uma qualquer genialidade, mas sim sobre a forma como lidamos com uma criança autista todos os dias e a nossa capacidade de termos momentos felizes. Desde muito cedo que decidimos que não iríamos sonhar como as coisas poderiam ser, mas sim tentar tornar cada dia um bom dia e aguardar pelo dia seguinte, esperando que também se revele um bom dia.



Ou seja, não aumentar desmesuradamente as expectativas?
Certamente. Não fazer subir a fasquia a alturas impossíveis e aceitar o que o quotidiano nos traz. É nisso que reside a felicidade, em especial para o Gabriel. Ele não tem qualquer perspectiva das suas próprias dificuldades e, para nós enquanto pais e especialmente quando a criança é mais nova, esse é um conceito difícil de compreender. Para o Gabriel – tal como para todas as crianças autistas – as coisas são como são e, à partida, não têm qualquer compreensão dos problemas. Quando lhes dizemos que existe algo de diferente com elas a resposta pode ser: «O que há de errado comigo? Eu sou apenas eu!». E há que respeitar essa perspectiva e perceber que os indivíduos autistas merecem ser respeitados exactamente como são e não serem comparados com parâmetros impossíveis. O que torna as coisas muito mais difíceis para as crianças autistas é que elas não possuem as ferramentas sociais necessárias para se protegerem das comparações, que são inevitáveis para todos nós, mas que as afectam de forma diferente.


No livro afirma que não é possível estar de forma permanente a fazer a ponte entre uma criança autista – neste caso o Gabriel – e o mundo que o pode magoar. E que isso é um dos pontos que mais o angustia…
De facto, não o podemos fazer. Tentámos, desde cedo, que o ambiente em redor do Gabriel fosse «normal». Ele foi para um jardim infantil normal e, posteriormente, para uma escola primária normal – onde teve ajuda especializada. A Noruega, assim como toda a Escandinávia, tem a reputação de ser uma sociedade muito tolerante mas, no momento em que o Gabriel foi diagnosticado, percebi que essa tolerância é ténue.



Como assim?
Em certa medida, as reacções das pessoas em relação ao meu filho são muito similares às reacções que temos quando conhecemos pessoas de culturas diferentes da nossa. Somos muito menos tolerantes do que pensamos. A relação entre a nossa família e o Gabriel está baseada na premissa de que, um dia, eu e a mãe já não estaremos cá e assim o nosso dever principal é o de o preparar para o momento em que tiver de contar apenas com ele próprio. E não o ajuda a ele, a nós ou à sociedade fingir que os pais vão viver para sempre e estar presentes para o ajudar. A «verdade» geralmente aceite quando se lida com pessoas autistas é dar-lhe a segurança de que eles necessitam: fazer sempre as mesmas coisas, à mesma hora e da mesma maneira, sem nada de novo ou perturbador. Isto é o que todos os médicos, terapeutas e psicólogos nos disseram. Mas isso está errado.



Porquê?
O mundo não é feito de rotinas pré-estabelecidas. E no momento em que o Gabriel entrar nesse mundo, está por conta dele mesmo. Então, desde muito cedo e no ambiente protector da casa, começámos a surpreendê-lo: ao pequeno-almoço discutíamos o que iria ser o jantar e, à noite, cozinhávamos uma outra coisa qualquer. E fazíamos isso com muitas outras tarefas ou projectos do dia-a-dia. Ao início, isto fazia-lhe muita impressão mas, gradualmente, ele habituou-se a aceitar as pequenas «surpresas» que lhe preparamos no quotidiano e a aceitá-las como factos inevitáveis. Esta estratégia de o habituar, pouco a pouco, às mudanças e ao inesperado, e o facto de o termos matriculado em escolas normais, foi a nossa maneira de o ajudar a construir pontes para a sociedade. Penso que esta estratégia não foi completamente consciente da nossa parte, mas um modo instintivo de agir, conforme os desafios que o nosso filho nos ia colocando. Por outro lado, desde o início que fomos bastante abertos em relação aos seus problemas. Fiz questão de ir às escolas falar com todas as crianças e os pais da turma dele e explicar a situação, sendo o mais verdadeiro possível, tentando que as pessoas fossem mais compreensivas em relação ao seu «comportamento especial».



Que idade tem o Gabriel neste momento?
Tem 15 anos.



Está, portanto, em plena adolescência. No livro, refere que ele tinha tido «muita sorte» em encontrar uma escola, professores e colegas que não só o aceitavam como gostavam dele. Isso ainda acontece?
Agora, as coisas estão mais complicadas. Na altura em que escrevi o livro, o Gabriel andava na escola com as mesmas crianças com que iniciou o jardim-de-infância. Toda a gente o conhecia e ele conhecia toda a gente. Mas, entretanto, mudou de escola e passou a ter muitas pessoas novas com quem lidar. A adolescência é uma altura complicada para todos nós mas pode tornar-se absolutamente pavorosa quando se compreende tão pouco o mundo e a si próprio como uma criança autista. Esta fase está a trazer problemas novos ao Gabriel, mas também está a modificar a atitude dos outros em relação a ele.



Faltam-lhe os amigos que tinha quando era mais novo?
Neste momento, os colegas preocupam-se com raparigas e todas as outras coisas típicas dos adolescentes e deixaram de ter paciência para ele. O Gabriel é muito menos maduro: ele sonha em ser como eles mas, infelizmente, está a tornar-se muito mais solitário do que era na infância. E também sofre porque, algumas vezes, os colegas são pura e simplesmente agressivos. Embora o Gabriel tenha um pouco mais de entendimento sobre as suas limitações, ainda não consegue encarar muitos dos fenómenos que encontra fora de casa. Os últimos dois anos e, provavelmente, os próximos dois serão o período mais duro da juventude do meu filho e também para nós, pais e irmãos. Isto porque colocou em destaque a necessidade de fazer escolhas. Deverá o Gabriel continuar numa escola normal ou, perante as presentes circunstâncias, será melhor inscrevê-lo numa escola especializada? Temos a experiência de que ao conhecer outras pessoas com problemas – não necessariamente apenas autistas – ele cria imediatamente laços com elas e existe uma confiança implícita, quase como um reconhecimento de que possuem algo que os outros não têm.



É uma questão de solidariedade?
De certo modo sim. Ele acaba agora o 10.º ano e, na Noruega, teria de iniciar o ensino secundário numa nova escola, com novos colegas. E, em termos puramente académicos, o Gabriel não consegue acompanhar os jovens da sua idade. Ele é óptimo em algumas coisas mas tem muitos problemas com conceitos abstractos e teóricos. A última coisa que queremos é que o nosso filho também falhe na escola e seja catalogado como tal. Por isso, talvez seja tempo de ir para uma escola para pessoas com necessidades especiais. Em paralelo, cabe-nos a partir de agora pensarmos de que forma o Gabriel vai entrar na idade adulta, ou seja se viverá connosco até nós estarmos cá para o apoiar ou se teremos de encontrar uma outra solução.



Ele já leu o livro?
Ainda não, mas já ouviu a versão áudio. Como dizia há pouco, ele tem hoje mais entendimento sobre a sua condição, o que lhe reforçou um pouco o «escudo protector» que tanto desejamos que crie. Mas o Gabriel ainda não conseguiu perceber porque é que algumas coisas parecem tão injustas e vou aguardar um pouco mais até lhe passar o livro para as mãos, já que é necessária uma capacidade de reflexão diferente. Espero que este comportamento por parte dos colegas também se vá modificando, mas não sabemos o que o futuro lhe reserva.



Quais são os sonhos do Gabriel?
Ele sonha apaixonar-se, casar e fazer todas as coisas que vê os outros fazerem. O meu filho tem sonhos mas é difícil dizer se ele sonha, como qualquer outro adolescente, em tornar-se um piloto ou uma estrela de rock ou se os sonhos estão ancorados nos seus problemas, ou seja, na ilusão de que, um dia, tudo será ultrapassado. Alguns desejos que ele manifesta são completamente irrealistas. Como qualquer criança solitária, o Gabriel adora jogos de computador e, durante anos, dizia querer criar o melhor jogo de todos os tempos. Mas para isso tinha de aprender matemática, matéria que odeia. Na altura, dizia-nos: «contrato alguém para fazer isso por mim», sem sequer parar para pensar que necessitaria de dinheiro para isso e, consequentemente, necessitaria de trabalhar. Ele não entende o conceito de dinheiro nem a necessidade de ter uma fonte de rendimento. Este é um bom exemplo das dificuldades com que ele ainda se debate. Em contrapartida, o maior talento do Gabriel é o desenho. Ele desenha maravilhosamente mas não entende que é uma habilidade que pode ser desenvolvida. Eu sugeri que talvez pudesse ter aulas especializadas mas ele não compreende o interesse: «Eu sei desenhar, porque razão preciso de aprender mais?» é o que me pergunta sempre.



Diz que o Gabriel é obcecado pela linguagem e não consegue compreender de que forma duas palavras diferentes podem querer dizer a mesma coisa. Teve um especial cuidado com a linguagem do livro dado que, em última análise, o destinatário das suas frases é o seu filho?
Eu sabia que tinha de disciplinar a minha linguagem, mas penso que esta influência do Gabriel se manifesta na vida em geral e não apenas na forma como escrevo. Ele tem tanto medo de mal-entendidos, de duplos sentidos e de todas as subtilezas verbais e orais que a família teve de ‘corrigir’ as várias formas de expressão. Obviamente que tive de fazer o mesmo ao escrever para ele, mas isto acabou por ser positivo para a qualidade do trabalho. O Gabriel necessita de precisão, tanto no aspecto verbal como no aspecto físico. Tudo tem de ser claro. Ainda hoje, a pior coisa que se lhe pode dizer é que não temos ideia do que vamos fazer no futuro imediato. É preferível dizer-lhe algo de concreto, mesmo que depois alteremos os planos à última hora. Fruto de todo o trabalho que desenvolvemos em família, ele compreende isso cada vez melhor. Mas ainda não consegue aceitar o que eu apelido de ‘insegurança flutuante’. Mas existem boas surpresas. No outro dia, o Gabriel estava ao computador e eu pedi para ele desligar e vestir-se para sair de casa, pois íamos visitar uns familiares. Ao que ele respondeu: «Papá, não posso. Sabes que eu necessito de ser avisado antes, para me preparar!». Fiquei com a nítida impressão de que era um desculpa para não sair de casa e fazer uma visita que não lhe apetecia mesmo nada. Ora isto é de uma subtileza fantástica para uma criança autista. E foi o suficiente para me aquecer o coração.


Carta de um pai


As palavras da versão original de «Querido Gabriel» foram já consideradas no seu país de origem como «um dos textos mais bonitos alguma vez escritos em norueguês». Com este testemunho de amor e admiração incondicionais — que não nega nunca os momentos menos risonhos, a incompreensão e a angústia — Halfdan Freihow coloca o foco num ponto muitas vezes esquecido: de que forma as famílias em que o autismo está presente criam dinâmicas de funcionamento.


fonte
http://www.paisefilhos.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=2316&Itemid=60

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