Autismo: uma possibilidade de leitura
Na Clínica infantil, o autismo tem se constituído como um dos mais intrigantes e inquietantes dos transtornos do desenvolvimento. A criança autista enclausura-se em si própria, não brinca com outras crianças, parece não responder aos chamados dos outros (inclusive de seus pais) e não compartilha o olhar com qualquer outra pessoa. Como referencial para se pensar as hipóteses metapsicológicas a respeito da constituição da síndrome autística, proponho o viés da teoria lacaniana, objetivando elucidar a questão. C.M. Laznik-Penot, psicanalista infantil, a partir de sua experiência clínica, situa o autismo como uma possível conseqüência de um fracasso da instalação da imagem do corpo, pela criança; uma falha na relação especular mãe-filho. Para desnudar essa questão, se faz necessário que retomemos o esquema óptico proposto por Lacan. Partindo do esquema, anterior ao estádio do espelho, vai se referir ao olhar no sentido de presença, expressando por esse olho o investimento libidinal. Entretanto, à presença pode se manifestar a ausência, na medida em que esta “(...)supõe uma presença original reenviando ao ser olhado e ao ser que olha, o eu e o corpo tendendo então a se definirem como efeitos do olhar” (LAZNIK, 1991, p. 32). Por conseguinte, o que sobressalta ao autismo, em detrimento de outros estados psicóticos, no que diz respeito a não-instauração da relação simbólica entre mãe e filho, vai ser a falha fundamental da própria presença original do Outro, acarretando uma impossibilidade do estabelecimento do tempo constitutivo do imaginário. O esquema óptico, que serve para ilustrar a estruturação primeira do aparelho psíquico, no tocante à imagem do corpo, que representa um objeto real- o bebê, em sua dimensão orgânica- e a imagem real, metaforizada pelo buquê de flores. Um observador, situado a uma certa distância, é capaz de perceber os dois constituindo uma totalidade. Contudo, o olhar que vê essa imagem não é a própria criança, mas necessariamente um outro. Remodelando o esquema, para fins de que a criança possa se ver, Lacan insere um espelho plano ao dispositivo original. Esse mecanismo modificado vai metaforizar o estádio do espelho, no qual o bebê vai se reconhecer, diante de sua imagem, através do espelho, representado pelo Outro. Entretanto, para que o sujeito possa reconhecer-se enquanto tal, por meio do espelho, é primordial que o Outro invista libidinalmente nele, introjetando seu desejo no pequeno ser. Segundo Rocha, 2005:
“O Outro é o lugar em que a constituição subjetiva se dá, sendo o elemento anterior necessário e o regulador da relação imaginária. Para se instaurar a antecipação ortopédica da totalidade corporal no estádio do espelho, é preciso o cone simbólico, como apontado nos esquemas ópticos, isto significa que para haver a alienação à imagem do outro, eixo de toda relação simétrica com o semelhante – é necessário que antes o Outro invista libidinalmente, afirme com seus significantes uma imagem”
Retomando o esquema óptico, no espaço situado além do espelho plano, é que vai se formar a imagem especular – i’(a) - na qual o sujeito vai se reconhecer como eu. Já no lado esquerdo desse esquema, veremos o conjunto formado pelo objeto real constituindo Um com a imagem real, que por sua vez, irá estabelecer o Ur-Ich, o próprio corpo, o Ur-Bild da imagem especular. Essa imagem real representará os “pequenos aa” que formam a reserva de libido. Nesse período, o bebê se volta ao adulto, ao seu cuidador, e , através do olhar, lhe lança uma demanda que venha a confirmar aquilo que pode perceber de sua imagem no espelho. Para explicar o fracasso da instauração do estádio do espelho, Laznik sustenta que “na necessidade de um primeiro reconhecimento, este não-demandado, mas que fundaria a própria possiblididade da imagem do corpo, ou seja o Ur-Bild da imagem especular, e que poderia se formar somente no olhar do Outro” (1991, p. 34). Por conseguinte, a Ur-Bild, abriria caminho para o estabelecimento de uma imagem especular propriamente dita. O olhar da mãe, no sentido de um investimento libidinal, se faz primordial para que a criança consiga perceber sua imagem diante do espelho. Contudo, quando esse processo falha, o bebê não possui condições de reconhecer sua própria imagem. Essa imagem real, que na não instauração do estádio do espelho, não é percebida pela criança, tem origem em uma modificação posterior do esquema óptico, assim proposto por Lacan: a imagem real, que anteriormente, aparecia em baixo do vaso, o objeto real, situa-se agora como efeito de uma falta, representada por “menos phi”. Essa falta vai ser sustentada pelo lugar do Outro, o A “barrado”. Este mecanismo possibilitará um processo de falicização da criança, no sentido de que há um investimento de libido por parte do Outro, do seu olhar que vê essa criança. Nessa perspectiva, o bebê só pode se ver porque marcado pela falta. Nesse sentido, permite-se falar em uma ilusão antecipatória: o Outro vê, através do seu olhar o que está para vir, um vir a ser. O fracasso da instauração de uma relação especular entre mãe e filho se daria quando esta percebe seu bebê, ainda em seu ventre como um corpo estranho, que simplesmente pode estar acomodado aí ou não. Assim, não se forma a possibilidade de antecipar seu bebê, a sua imagem real não é percebida, nem sentida. Essa falha na ilusão antecipatória vai acarretar, na criança, uma impossibilidade de se ver, de se reconhecer, enquanto imagem do corpo. Nessa medida, a libido da criança, ou melhor, a forma como a criança vai dirigir sua libido sofre conseqüências. Segundo Kupfer, citando Dolto (2008, p. 45), a libido “estaria de férias”. No autista, o desejo parece ser retirado do corpo, no sentido de que este se manteria apenas como um corpo vegetativo. Dolto propõe o termo “desolidarização”, no qual há uma separação entre sujeito e corpo. No entanto, quando o sujeito autista se vê confrontado em estabelecer alguma relação com seu semelhante, sendo que sua libido encontra-se "em férias”, a criança responde de forma que o outro seja apenas fonte de sensações, como por exemplo, em alguns comportamentos expressos quando o autista não consegue beijar convenientemente o rosto de uma pessoa e parece colar-se a ele. No entanto, essa libido pode se reservar à própria criança, no que diz respeito ao seu corpo, praticando auto-lesões e auto-mutilações, como também é possível observar nos comportamentos de muitos autistas. O autismo, para a diversidade de teorias que se propõem a estudá-lo, traz muitas incertezas e especulações quanto às causas e demais questões subjacentes à síndrome. A abordagem de Lacan, discutida por Laznik, se propõe a trazer alguma luz no que diz respeito ao tema, sem, é claro, pretender possuir uma verdade absoluta.
Referências: CHEMAMA, R. (org). (1995). Dicionário de Psicanálise, Larousse. Porto Alegre, Artes Médicas. LAZNIK-PENOT, M.-C. Do Fracasso da Instauração da Imagem do Corpo ao Fracasso da Instauração do Circuito Pulsional: quando a alienação faz falta. In: ____(org.) O que a Clínica do Autismo Pode Ensinar aos Psicanalistas. Salvador, Álgama, 1991, p.31-48. KUPFER, M.C. Autismo: uma Estrutura Decidida? Uma contribuição dos estudos sobre bebês para a clínica do autismo. In:_____& TEPERMAN, D. (Orgs). O Que os Bebês Provocam nos Psicanalistas. São Paulo, Escuta, 2008, p. 41-47. ROCHA, F. H. (2005). Autismo na Infância: Hipóteses Psicanalíticas.
Autoria: Rafaela Gowert
http://www6.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php/Autismo:_uma_possibilidade_de_leitura
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