Blog do André Luís Rian, rapaz autista que quer conversar com você sobre os problemas soluções do autismo...
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
COMPROMETIMENTO INTELECTUAL NO MERCADO DE TRABALHO
Centro de Estudos de Integração de Pessoas com Comprometimento Intelectual no Mercado de Trabalho
Universidade de Gênova
Carlo Lepri
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"SER JOVEM: O OLHAR DA SOCIEDADE E DA FAMÍLIA"
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"A IDENTIDADE ADULTA DAS PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN: O PAPEL DA FAMÍLIA E DA
SOCIEDADE’’
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ANO - EXPECTATIVA DE VIDA
1929 - 9 anos
1947 - 12 – 15 anos
1961 - 18,5 anos
1988 - 50 anos
2002 - 58,6 anos
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"É POSSÍVEL SE SENTIR ADULTO DESDE QUE OS OUTROS NOS RECONHEÇAM COMO ADULTOS"
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SOMOS CAPAZES DE PENSAR NAS PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN COMO ADULTAS?
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"TUDO O QUE ACREDITAMOS EXISTE, E APENAS ISSO"
Ugo Von Hofmansthal
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A IDENTIDADE É A IMAGEM QUE UM INDIVÍDUO FEZ DE SI MESMO
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A IDENTIDADE SE INICIA COM OS PROCESSOS DE "SEPARAÇÃO"
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A IDENTIDADE SE INICIA COM OS PROCESSOS DE "SEPARAÇÃO" E SE ESTABILIZA COM A
ENTRADA NOS PAPÉIS SOCIAIS
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A IDENTIDADE SE ESTRUTURA DURANTE A INTERAÇÃO SOCIAL E COM BASE NA IMAGEM DE
SI PERCEBIDA NOS OUTROS
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"NÓS SOMOS DA FORMA COMO SOMOS PENSADOS PELOS OUTROS"
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Alguns obstáculoso...
- ACHAR-SE INDISPENSÁVEIS COMO PAIS
- A FRAGILIDADE DOS PROCESSOS DA ADOLESCÊNCIA
- A IMAGEM TRANQUILIZADORA DA "CRIANÇA"
- A AUSÊNCIA DE PAPÉIS SOCIAIS
UMA VISÃO "ANTROPOLÓGICA" DA PESSOA DOWN
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AS NECESSIDADES DE NORMALIDADE:
- A ACOLHIDA
- O IMAGINÁRIO
- O PROJETO DE VIDA
- OS PAPÉIS SOCIAIS
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….....
Seus filhos não são seus filhos
Eles não vêm de vocês mas através de vocês
Eles não pertencem a vocês, apesar de vocês viverem juntos
Vocês podem amá-los, mas não obrigá-los a pensar como vocês
Porque eles têm seus próprios pensamentos
Vocês podem proteger seus corpos, mas não suas almas
Porque moram em casas futuras, que nem mesmo em sonho vocês podem visitar
Vocês são os arcos a partir dos quais os filhos, suas flechas vivas, são
disparados para longe.
Gibran Kahil Gibran
Carlo Lepri
Fórum Internacional Síndrome de Down
Campinas, outubro, 2006 - Brasil
"Ser jovem: o olhar da sociedade e da família" é o título "oficial" desta
comunicação.
(3)
Trata-se de um título formulado de modo amplo e genérico.
Acredito que os organizadores fizeram essa escolha para dar ao autor a máxima
liberdade na abordagem do tema.
No entanto, quando comecei a escrever esta apresentação percebi que sentia uma
espécie de desconforto em relação ao termo ‘jovem’.
A palavra ‘jovem’ (pelo menos em relação ao significado que na Itália se dá a
esse termo) traz consigo muita ambigüidade e isso não me ajudava em meu
propósito de exprimir com clareza o que me parecia útil dizer numa ocasião tão
importante).
A palavra "olhar", que em italiano significa uma "olhadinha rápida", também me
parecia pouco idônea para representar a complexidade e a importância das tarefas
que a família e a sociedade podem assumir, no plano psicossocial, em relação à
formação da identidade das pessoas com SD.
Depois de uma rápida reunião comigo mesmo (uma das poucas coisas que tem
funcionado para mim ultimamente), decidi (secretamente) mudar o título desta
apresentação.
Modificando o título, me obriguei, por assim dizer, a abordar de maneira
precisa e sem incertezas o tema que considero hoje, para todos nós, um
verdadeiro desafio: a construção de uma identidade adulta para as pessoas com
SD.
O título "não oficial" que desejo propor a vocês, então, é o seguinte:
(4)
"A identidade adulta das pessoas com SD: o papel da família e da sociedade"
O título assim (re)formulado obriga a levar em consideração três elementos.
Vou fazer apenas um breve comentário sobre os dois primeiros para me
concentrar, depois, sobre o terceiro.
O primeiro elemento, ainda que implícito, é evidente para todos nós: as
pessoas com comprometimento intelectual e, em particular, as pessoas com SD, são hoje mantidas no mundo da infância, muito além do que é necessário.
Esse processo de infantilização limita suas potencialidades, o sentimento da
sua própria dignidade, sua auto-estima e sua contribuição para o crescimento e
desenvolvimento da socieadade.
Este, eu diria, é o dado de partida.
O segundo elemento, diz respeito ao fato de que, pelo menos no plano dos dados
populacionais, o universo das pessoas com síndrome di Down torna-se cada vez
mais um universo de pessoas "adultas".
Trata-se de um fato muito concreto e, diria que por sorte, inevitável, que é
preciso levar em consideração para não nos encontrarmos despreparados diante das
potencialidades (e das responsabilidades) que essa realidade nos propõe.
Os dados que as pesquisas sobre a expectativa de vida das pessoas Down nos
colocam a disposição são, de fato, muito claros.
(5)
ANO - EXPECTATIVA DE VIDA
1929 - 9 anos
1947 - 12 – 15 anos
1961 - 18,5 anos
1988 - 50 anos
2002 - 58,6 anos
É certo, embora não tenhamos dados atualizados, que nestes últimos quatro anos
a idade média tenha aumentado ainda mais, já que começam a ser apontadas pessoas
com SD de mais de 70 anos.
É importante registrar que o notável aumento da expectativa de vida das
pessoas Down começa a determinar consequências concretas no plano do estilo de
vida das famílias e da organização dos serviços.
A primeira conseqüência está no fato de que cada vez mais freqüentemente as
pessoas Down sobrevivem a seus pais.
Isso obriga as famílias a se questionar: o que acontecerá com nosso filho
quando não estivermos mais aqui?
Para responder a essa pergunta, nasceu um movimento na Itália, que as famílias
e suas associações definiram de modo eficiente com o nome de "Depois de nós".
Trata-se de um movimento de famílias, de profissionais e de voluntários que se propõe a identificar soluções de apoio afetivo e habitacional, mas, também, de
formas de tutela legal (administrador de amparo) que permitam que as pessoas
Down vivam com dignidade, mesmo depois da morte dos pais.
Mostro, com isso, como a preocupação "o que acontecerá quando não estaremos
mais aqui" tornou as famílias (e os serviços) cada vez mais conscientes de que
não pode existir um "depois de nós" programado de maneira abstrata.
O "depois de nós" só tem sentido se adequadamente preparado por um "durante
nós".
O "durante nós" das famílias nasce da consciência de que o futuro dos próprios
filhos não pode ser exorcizado e que quanto maior forem hoje os investimentos
para uma qualidade da vida autônoma e socialmente integrada, mais garantida será
amanhã a possibilidade de uma vida independente, mesmo sem os pais.
Uma outra conseqüência do aumento da idade média está relacionada ao
surgimento de novas necessidades das pessoas Down, isto é, ao seu direito à uma
instrução, a um trabalho, a uma vida social e afetiva, a espaços para o lazer.
O aumento da idade, enfim, colocou em evidência a insuficiência de serviços
sociais e educativos, nascidos historicamente com a idéia de ajudar "crianças"
e, freqüentemente, numa perspectiva predominantemente sanitária.
Vamos ver amanhã, quando falaremos de inserção no mercado de trabalho, como é
importante para as pessoas Down adultas poder dispor de serviços "de mediação" e
de "acompanhamento" em relação a complexidade dos papéis sociais.
Serviços que poderíamos definir mais como de "habilitação" do que de
reabilitação.
Pode-se dizer, portanto, que com o aumento da idade populacional o tema do
tornar-se "adulto" das pessoas Down perdeu qualquer conotação abstrata para se
tornar um tema de concreta atualidade.
Entramos, assim, no cerne da terceira questão que o "novo" título desta
apresentação nos propõe: o papel da família e, mais em geral, da sociedade na
construção da identidade adulta da pessoa Down.
Que tarefas se apresentam à família e à sociedade, para que ao lado de uma
"maturidade populacional" possa existir, na medida do possível, uma "maturidade
psicológica" e "social"?
A tese que desejo sustentar em relação a isso é simples mas, ao mesmo tempo,
compromissiva: uma pessoa Down pode tornar-se "psicologicamente adulta" desde
que a família e a sociedade acreditem que isso seja realizável.
A possibilidade de se tornar adulto e a conseqüente capacidade de se
reconhecer como tal, em relação aos diretios e deveres dessa posição, precisa,
de fato, de um reconhecimento e de uma legitimação que apenas "os outros" podem
dar.
(6)
Nessa perspectiva, não é possível entender simplesmente como um "olhar", fugaz
e passageiro, sem conseqüências significativas, o da família e da sociedade, em
relação à condição adulta da pessoa Down.
O processo do "tornar-se adulto", para todos nós, mas em particular para as
pessoas com comprometimento intelectual, não está ligado apenas ao timer
biológico, e sim à qualidade, à intensidade e à persistência dos olhares dos
outros e, principalmente, à imagem que estes olhares refletem.
Se a consciência de ter um filho adulto ou de ter um filho pequeno que vai se
tornar adulto um dia, não nasce dentro do coração dos pais, e, mais em geral, da
sociedade, dificilmente essa condição poderá se concretizar.
Nesse sentido a família e a sociedade assumem o papel de verdadeiros
protagonistas da construção da identidade adulta das pessoas com SD.
Se tudo isso corresponde à verdade acredito que esse Congresso represente uma
grande ocasião para nos perguntarmos algumas coisas, como por exemplo:
Somos capazes de pensar nas pessoas com SD como pessoas adultas?
(7)
Somos capazes de permitir-lhes que se reconheçam adultos nos nossos olhares e,
conseqüentemente, nos nossos comportamentos? (não nos esqueçamos que as palavras
e as ações se organizam em torno da imagem que temos do outro)
E ainda:
Estamos prontos a imaginar adulta uma criança com SD e fazer com que essa
imagem se concretize com o tempo?
Estamos dispostos a aceitar a idéia que a maturidade de uma pessoa com
síndrome de Down pode se realizar apenas em parte e, talvez, de maneira
diferente daquela que havíamos imaginado?
E, enfim, concordamos que vale mais a pena acompanhar as pessoas Down rumo ao
difícil mundo dos adultos do que mantê-las eternamente no mundo protegido das
crianças? Usando uma metáfora poderíamos dizer que, para as pessoas Down, entrar no
mundo dos adultos é como ter de abrir uma porta que precisa de duas chaves.
Uma das chaves está nas mãos deles, mas a outra somos nós que possuímos.
Se não houver nossa autorização, nosso consentimento, nosso encorajamento
convicto, a porta dificilmente poderá ser aberta.
Ou, no máximo, vai se abrir uma fresta, a partir da qual será possível
entrever um mundo que, no entanto, continuará inacessível.
Tomar conhecimento de que somos nós que possuimos uma das chaves para permitir
o acesso a uma identidade psicologicamente adulta das pessoas Down é o primeiro
passo para que isso se torne verdadeiro na realidade.
(8)
Tudo o que acreditamos existe, e apenas isso
Usamos diversas vezes a palavra "identidade".
Vamos tentar definir esse conceito e identificar quais são os mecanismos
fundamentais através dos quais a identidade se constrói.
Espero que, assim, seja mais fácil compreender quais são as dificuldades que
todos nós encontramos em acompanhar as pessoas Down na sua viagem rumo ao mundo
dos grandes.
Muitos autores concordam em definir a identidade como o "sentido do próprio
ser único, contínuo através do tempo e diferente de qualquer outro ser".
No entanto, já que a identidade corresponde à pergunta "Quem sou eu?", pode-se
simplesmente afirmar que ela é: "a imagem que um indivíduo fez de si mesmo".
(9)
A identidade é uma construção sem pausas.
Poderíamos dizer que se trata de uma espécie de "arquivo" atualizado
continuamente, tanto de maneira consciente como de maneira inconsciente, no qual
são sintetizados os eventos e os encontros significativos da nossa história
pessoal, familiar e social e da qual extraímos a imagem de nós.
Trata-se de uma atualização contínua que atinge uma certa estabilidade na
idade adulta e, talvez, poderíamos dizer, o máximo da instabilidade durante a
adolescência.
A construção da imagem de nós mesmos é uma viagem que começa muito cedo.
(10)
A primeira parte deste percurso se inicia com o nascimento da criança e,
depois, tende a se dissipar com a entrada na adolescência.
Trata-se do período que poderíamos definir como a fase da
separação/indentificação.
Sabemos que o nascimento psicológico da criança começa justamente a partir dos
processos de separação da mãe.
"A identidade nasce quando a primeira imagem que a criança tem de si mesmo é
refletida pelo rosto de sua mãe" escreve uma colega francesa.
Mas esse nascimento da identidade é possível justamente porque a criança não
se percebe mais numa dimensão simbiótica com a mãe.
Se a criança não se "sente" separada, distanciada da mãe, ela não consegue
mentalizá-la e, portanto, se reconhecer como ser autônomo.
Apenas a partir da separação e do distanciamento progressivo da mãe (mas
também, obviamente, do pai e dos outros componentes da família) pode ter início
o processo de identificação e o nascimento do "eu sou" que se tornará, depois,
tão prepotente na criança e tão frágil no adolescente e que nos acompanhará por
toda nossa viagem existencial.
Esse processo psicológico tem um grande reflexo no plano educativo.
A estruturação de uma imagem de si cada vez mais autônoma e capaz será
favorecida por uma "distância relacional e organizacional correta" por parte dos
pais.
Estar "muito perto", por parte dos pais, vai determinar conseqüências no plano
da conquista das autonomias e da auto-estima, bem como um "muito longe" não
poderá não ter conseqüências no plano da segurança afetiva.
A segunda parte da viagem em direção à uma identidade adulta já aparece na
infância, defini-se na adolescência para, depois, se estruturar na idade adulta.
(11)
Essa fase nasce a partir da progressiva consciência, já presente na criança,
de que as relações entre as pessoas não só do tipo "familiar" (ou seja, de que
os "outros" não são todos "mamães", "papais" ou "parentes") mas que existem
relações que só podem ser estabelecidas desde que se respeitem determinadas
regras, ditadas pelos diversos papéis que cada um desempenha. (Vamos ver amanhã
como essa é uma das condições essenciais para poder trabalhar).
Trata-se de um processo por meio do qual os indivíduos entram dentro dos
"subuniversos sociais" (em primeiro lugar, a escola) e graças ao qual, através
da aquisição dos papéis, aprendem a conhecer as posições que ocupam na sociedade
e a compreender os direitos e os deveres que caracterizam essas posições.
(É inútil dizer como são importantes, para isso, os micropapéis que podem ser
confiados à pessoa Down na organização familiar.)
Nesta fase a identidade, o "quem sou eu", começa a encontrar resposta
principalmente nos papéis que se representam.
Seria possível dizer "eu sou principalmente o que eu faço".
Mas para que essa representação possa ser autêntica e eficaz é necessário que
os papéis que se desempenham sejam verdadeiros e úteis para a sociedade.
Surge aqui o tema fundamental da integração social.
Desejo enfatizar com muita força esse conceito, porque nossa experiência nos
diz que a construção de um Si autêntico no mundo dos adultos é possível desde
que os papéis propostos à pessoa com comprometimento sejam os mesmos dos adultos
cidadãos daquela comunidade.
Papéis adultos propostos de "brincadeira" às pessoas com comprometimento
intelectual, como às vezes acontece nos centros especiais, podem determinar uma
situação psicológica de inautenticidade dentro da qual são possíveis até mesmo
condições patológicas de um Si representado e falso.
A partir dessas considerações parece evidente que a identidade (isto é, a
imagem de si) pode se estruturar somente dentro de uma dimensão relacional.
Vai se tratar de uma dimensão relacional predominantemente familiar, no que
diz respeito à fase da separação/identificação, e de uma fase relacional
predominantemente ampliada aos grupos sociais (escola, grupo de pares, trabalho,
lazer), no que diz respeito à entrada nos papéis sociais.
Em todo caso, podemos afirmar com razoável segurança que:
(12)
"A identidade se estrutura durante a interação social e com base na imagem de
si percebida nos outros"
Em outras palavras, é na qualidade do encontro com os outros e através da
imagem de nós que vemos refletida nos outros que nós podemos encontrar resposta
à pergunta "quem sou eu?" (looking glass self)
Pode-se, assim, afirmar, com uma frase de efeito, talvez, mas eficaz e rica de
sugestões que:
(13)
"Nós "somos" da forma como somos "pensados" pelos outros"
Essa chave de leitura é plena de esperança para as pessoas com síndrome de
Down já que coloca em crise a idéia de que a identidade e, no nosso caso, a
identidade adulta, esteja mecanicamente ligada à integridade dos processos
cognitivos ou do material genético.
A possibilidade de se tornar adulto, nessa perspectiva, não está condicionada
pela categoria da inteligência mas sim pela qualidade dos encontros com os
outros.
Poderíamos dizer simplesmente: "eu posso me tornar adulto desde que você pense
em mim como adulto, de modo que eu possa ver meu reflexo e me reconhecer nessa
imagem".
Vivien Burr escreveu recentemente "O si (nós poderíamos dizer a identidade)
não é uma propriedade privada do indivíduo, colocada nas estruturas cognitivas,
no material genético ou nas estruturas do caráter, mas uma construção fluída,
negociada através da interação social".
Tudo isso abre novos horizontes para a construção de uma identidade adulta
para as pessoas com síndrome di Down mas, ao mesmo tempo, abre novas tarefas
educativas e maiores responsabilidades para todos.
Que conseqüências podem ter essas considerações em relação às tarefas
educativas da família e aos deveres da sociedade?
É necessário dizer, até para não dramatizar demais, que a dificuldade em
favorecer e em reconhecer a maturidade dos próprios filhos não diz respeito
apenas aos pais de uma pessoa com comprometimento. É uma dificuldade geral que, como sabemos, mais ou menos todas as famílias
experimentam.
Ela tem a ver com a necessidade, por parte dos pais, de ter de se
conscientizar de que, com o passar do tempo, se tornam cada vez menos
indispensável na vida dos próprios filhos, descoberta nem sempre agradável e, de
qualquer forma, carregada de ambigüidade.
Essa perda de importância marca sempre uma mudança na vida psicológica e
social dos pais, já que os obriga a reprojetar o próprio futuro e a encontrar
novos objetos nos quais investir as próprias energias.
Para pais que têm um filho com comprometimento que "se torna grande", a
redefinição do próprio papel pode ser muito mais penosa, a ponto de se tornar,
quando não foi detalhadamente programada, impossível.
Às vezes, a idéia de modificar o próprio papel de pais não é nem mesmo levada
em consideração, a ponto de se obrigar ao papel inatural de "pais vitalícios de
um filho pequeno".
Lembro com emoção de um pai idoso que, apesar de ter um filho com
comprometimento intelectual já com mais de cinqüenta anos, me confessou com
amargura "Sou tão indispensável para meu filho que não posso nem mesmo morrer em
paz".
E, recentemente, um pai durante uma entrevista me disse: "Preciso ser pai em
tempo integral numa idade em que seria com prazer avô em tempo parcial".
Vamos tentar nos perguntar porque a dificuldade em imaginar o próprio filho
adulto e, portanto, em assumir uma posição de "distância correta" está,
freqüentemente, tão presente nas famílias que têm um filho com comprometimento
intelectual.
Podemos tentar identificar alguns dos obstáculos que estão na base dessa
dificuldade para, depois, indicar alguns caminhos de trabalho.
Parece-me que o primeiro aspecto pode estar relacionado com a idéia de se
achar indispensáveis para sempre como pais.
(14) O nascimento de uma criança com comprometimento representa um trauma grave
para a família e para a comunidade.
No caso da síndrome de Down, a precocidade e a precisão do diagnóstico, não
deixam nem mesmo, por assim dizer, tempo para respirar.
Ainda que, com o tempo, os pais possam desenvolver muito amor para com aquela
criança, no início a relação é caracterizada por sentimentos de desilusão e de
rejeição.
O sentimento de culpa dos pais, e da mãe em particular, derivado de ter gerado
uma criança que não corresponde plenamente às expectativas é, em geral, atenuado
com um excesso de proteção e de atenção.
Determina-se aqui um paradoxo que observamos muitas vezes: a família de uma
criança com comprometimento tem de se sentir, em relação ao próprio filho, não
"suficientemente boa" como desejava Winnicott para todas as famílias, mas,
poderíamos dizer, "absolutamente perfeita".
Esse excesso de atenções e de proteção (em parte justificadas pelas condições
da criança mas, freqüentemente e em ampla medida, ativadas como reação ao
sentimento de culpa e ao temor do juízo social), determina um investimento muito
alto de energias em termos de cuidados e assistência.
Este investimento prolongado no tempo reforça nos pais a idéia de serem
indispensáveis para sempre para um filho que se tende a imaginar como
eternamente carente de presença e de atenção.
Eis, então, que os tão desejados processos de separação e distanciamento podem
sofrer atrasos ou interrupções e aquela "correta mas também variável distância
afetiva e organizacional" entre os pais e o filho com comprometimento se torna
difícil de ser conseguida.
Distanciar o filho pouco a pouco como ocorre com todas as crianças normais e
em todos os processos educativos se torna, assim, uma ação que é percebida como
perigosa.
Montobbio, na sua "Viagem do senhor Down", se pergunta:
"Como é possível distanciar um filho que é em parte rejeitado e que, portanto, inconscientemente desejamos afastar?"
E Montobbio ainda escreve: "... não devemos esquecer que com um filho Down o
distanciamento e a separação, condição essencial para que o filho gradualmente
adquira os próprios espaços e amadureça uma progressiva autonomia, é vivido
inconscientemente como um equivalente da rejeição e faz emergir na alma do pai e
da mãe estados de ânimo de culpa e comportamentos reparadores de proteção"
Por outro lado, precisamos nos perguntar como é possível iniciar uma viagem
rumo à maturidade se não experimentarmos os distanciamentos necessários?
Se não se lê nos olhos e no coração do outro aquele conjunto de sentimentos de
adversidade e de confiança que encorajam a aprendizagem do "conseguir sozinhos"?
(15)
Um outro elemento que pesa na dificuldade em reconhecer a maturidade dos
filhos com comprometimento intelectual está ligado à fragilidade dos seus
processos de transição da adolescência.
O benéfico uso da contraposição aos pais que a criança já utiliza precocemente
com os seus "não" para se afirmar como "eu sou" e que se torna absoluto durante
a adolescência, aparece de forma menor ou diacrônica na pessoa com
comprometimento.
Em muitos casos o adolescente con síndrome de Down é um "adolescente sem
adolescência", privado, então, de um benéfico espaço de transição dentro do qual
reforçar seus processos de distanciamenteo e de autonomia das figuras dos pais.
A pessoa com comprometimento pouco treinada para a autonomia se torna, por sua
vez, "fraca" nas ações de afastamento dos pais e dificilmente pode contar com um
grupo da mesma idade que a apóie nesse percurso.
Às vezes acontece que, quando essas ações de contradependência aparecem,
eventualmente de maneira desajeitada, ao invés de serem reconhecidas e
apreciadas como um sinal de crescimento, são reprimidas ou interpretadas como um
comportamento "inadequado" ou "perigoso".
Existe, nos processos de infantilização das pessoas com comprometimento
intelectual, um fator, que eu chamaria de "tranquilização", que vale tanto para
os pais como, mais em geral, para a sociedade.
(16)
É, obviamente, muito mais fácil e tranquilizador para a família pensar que tem
de tratar com uma criança do que com um adulto.
Com as crianças sempre sabemos o que fazer, como se comportar, enquanto a
imagem do "deficiente-adulto" é pouco tranquilizadora, já que traz problemas
novos e riscos diante dos quais nem sempre estamos preparados.
Vamos pensar, por exemplo, no tema da sexualidade, na vida afetiva, no
trabalho, na vida independente.
Um último obstáculo que limita o acesso a uma identidade adulta para as
pessoas com síndrome de Down deve ser relacionado diretamente com a organização
social e com a sua cultura.
(17)
A ausência de papéis sociais no mundo dos adultos para essas pessoas (a partir
dos papéis de trabalho) e, portanto, a ausência de uma representação social, de
uma imagem social da pessoa com comprometimento adulta, faz com que a sociedade
não apóie a família no saber imaginar "grande" o próprio filho.
A sociedade delega à família (e às organizações nascidas a partir dela) um
papel educativo e de cuidado que vai bem além das suas tarefas naturais.
A organização social, não sendo capaz (ou melhor, não estando acostumada) a
fornecer direitos de cidadania através de papéis sociais valorizados e espaços
sociais utilizáveis, confia à família, como "lugar protegido", e às suas
ramificações organizacionais, "centros diurnos", "laboratórios", "centros
especiais", tarefas de assistência, de cuidado e reabilitação.
Essas ações, se prolongadas por muito tempo e não voltadas à integração social, não só não são úteis, mas podem se tornar prejudiciais porque, como já
dissemos, reforçam a idéia de que a pessoa Down seja uma eterna criança doente
que deve ser reabilitada dentro de lugares separados e artificiais.
À luz dessas dificuldades, quais são os desafios que se apresentam às
famílias, aos técnicos e à sociedade, para tornar possível a viagem do senhor
Down rumo ao mundo dos adultos?
Já foi dito várias vezes que apenas restituindo a imagem de um adulto
poderemos permitir que uma pessoa Down "se sinta" adulta.
Mas para que essa imagem seja real é necessário que seja permitido que as
pessoas Down também tenham acesso, da maneira mais normal, natural e verdadeira,
aos mesmos papéis sociais de todos os outros cidadãos.
Para dar início a essa mudança é necessário, porém, ver essas pessoas sob uma
nova luz.
Uma luz que ilumine não apenas os seus deficit mas, principalmente, seus
recursos e suas capacidades. Não apenas suas necessidades de dependência mas,
principalmente, as de autonomia. Não tanto suas "anomalias", mas a sua
humaníssima originalidade.
(18)
Poderíamos dizer, portanto, que é necessário uma "visão antropológica" da
pessoa Down, a partir da qual nasça uma representação social valorizada que
conduza rumo à imagem de "pessoa socialmente integrada".
Nessa perspectiva ser "pessoa" significa ver verdadeiramente reconhecido o
próprio direito/dever de ser inserido no sistema social "normal", dando, assim,
o máximo de "sentido" à própria aventura humana.
Se compartilhamos essa postura, é preciso, então, reconhecer que será
necessário garantir à uma pessoa Down as mesmas "normalidades" psicológicas,
afetivas e educativas de qualquer outra pessoa.
(19)
Em primeiro lugar, a normalidade de Acolhida.
Ou seja, a resposta à necessidade afetiva de se sentir plenamente aceitos e
amados.
Goethe escreve "Sentir-se amado dá mais força do que se sentir forte."
Aceitar, amar, acolher um filho com síndrome de Down para os pais, no início,
não é fácil.
Mas justamente por isso, é necessário que uma família que vive essa
experiência se sinta acolhida e comprendida.
É necessário que a família sinta ao seu lado profissionais capazes de
demonstrar aliança e confiança e, ao mesmo tempo, uma sociedade acolhedora,
capaz de inclusão social.
Porque uma família acolhida, se sentirà mais forte e capaz, por sua vez, de
acolher e de se demonstrar pronta a transmitir confiança e a compartilhar com o
filho os riscos desse ir rumo ao mundo dos grandes.
Ao lado e dentro da normalidade de acolhida é necessário garantir à pessoa
Down uma normalidade de "imaginário".
(20)
O imaginário é a capacidade de sonhar com os próprios filhos, de saber vê-los
projetados no futuro.
É, também, no nosso caso, a capacidade de saber sonhá-los adultos.
O imaginário é um espaço feito de sonhos dentro do qual "antecipar o
desejável" para os próprios filhos.
É um grande presente que os pais dão, já que as crianças podem se tornar
grandes "pegando emprestado os sonhos que os pais sonharam para elas".
É bom ser audazes nos nossos sonhos, já que, como escreve Luis Sepulveda no seu livro "O poder dos sonhos":
"Se não formos audazes, o que não é sinônimo de irresponsáveis, se não formos
terrivelmente audazes com os nossos sonhos e não acreditarmos neles até
torná-los realidade, então os nossos sonhos murcham, morrem, e nós, com eles".
Sentir-se acolhidos e acolher, possuir um imaginário, um sonho rumo ao mundo
dos adultos leva a descobrir uma outra necessidade de normalidade.
Poderíamos defini-la como a normalidade do "o projeto de vida".
(21)
Se possuir um imaginário sobre a pessoa Down significa "antecipar o desejável
através do sonho", construir para ele (e com ele) um "projeto de vida" significa
"antecipar o possível" prevendo ações precisas e prazos.
Trata-se de uma passagem muito delicada visto que o "projeto de vida" exige um
confronto inevitável com o princípio de realidade.
Esse confronto determina, por um lado, o encontro com os limites e, ao mesmo
tempo, o encontro com espaços de negação dos limites quando eles são percebidos
como muito penosos para serem aceitos.
O projeto de vida de uma pessoa com síndrome de Down deve levar em conta a
exigência desse equilíbiro entre "o encontro com os próprios limites" e o
direito a legítimos "espaços de negação" dos mesmos.
O que infelizmente ocorre é que, na ausência de um projeto de vida realista,
as pessoas Down correm o risco de encontrar a dureza de seus limites sem
encontrar, ao mesmo tempo, suas potencialidades.
Dado que um encontro dos limites que não seja acompanhado também por um
encontro com as capacidades, é percebido como muito doloroso, o risco é o de
recorrer a maciças doses de negação dos limites através de um mascaramento da
realidade.
Deste modo a vida se torna uma representação não autêntica dentro da qual,
para sobreviver, é necessário a formação de uma falsa identidade.
É evidente, em relação a isso, uma última necessidade de normalidade:
a normalidade de papel social.
(22)
Como é possível evitar que a dureza do encontro com os próprios limites
determine fugas para a negação e para o mascaramento da realidade?
O único modo é garantir que o encontro com os próprios limites ocorra de
maneira contextual à tomada de consciência das próprias capacidades e das
próprias competências.
Este delicado encontro entre os limites e capacidades torna-se possível desde
que possa acontecer dentro dos papéis sociais normais previstos para todos os
cidadãos.
Assumindo um papel ativo, dentro dos papéis previstos para todos (escola,
trabalho, lazer), a pessoa Down, mas poderíamos dizer qualquer pessoa, pode
construir um Si autêntico de maneira realista.
Isto é o que chamamos de colocar uma pessoa "em situação de normalidade" e é
muito parecido com o que descreve Chomski quando diz "nenhuma mãe sabe quais
neuronios se ativam quando a criança começa a andar, mas sabe que precisa
colocá-la em pé e a criança vai andar".
Todos nós sabemos, até por experiência pessoal, que se tornar emotivamente e
psicologicamente adultos pode ser muito trabalhoso e que o alcance de um status
adulto pode ser considerado por todos um objetivo apenas ideal.
Ser adulto é identificado, geralmente, com a capacidade de cumprir algumas
tarefas e superar algumas fases como por exemplo:
sair da família
encontrar um trabalho
casar-se e se tornar pais
progredir na carreira ocupar-se dos próprios pais
Eu penso que ser adulto pode não estar exatamente ligado ao dever de superar
mecanicamente essas tarefas, mas sim à possibilidade de viver de maneira
consciente e responsável o próprio tempo, capazes de pedir ajuda, mas sem
depender totalmente dos outros.
Hoje as pessoas Down propõem um desafio à nossa maturidade de pessoas adultas:
saber imaginar para elas uma "maturidade possível de maneira realista" ao invés
de "uma infância eterna".
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