segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

AUTISMO INFANTIL, UM COMPONENTE SINDRÔMICO


Autismo Infantil, um Componente Sindrômico

Eliane Pires de Albuquerque

Texto Publicado na Revista Veredas no. três
[



... nas esquisitices peculiares aos psicóticos, essenciais às crianças com autismo, inicio este trabalho de forma igualmente estranha aos ouvidos da ciência.




Viver em termos do próprio eu
Auto-exílio narcísico?
Existência excêntrica?
Conjunto vazio.
Nem imagem, nem símbolo
Só real, autismo infantil.
Cadê o defeito?
Alguém escondeu?
Investiguem a estrutura
Não esqueçam a bioquímica
Vasculhem o lugar onde o erro se deu.
Poupem os pais, são inocentes
Aos filhos só desejam o bem ...
Se querem, culpem a genética
Ou aos congênitos também.
Varram em busca todo o SISTEMA
Porque, onde a ciência tarda
Resta aquilo que amarga
Em discurso, lágrima ou POEMA




Agora, fecho a cortina épica dos meus atirados versos e abro a porta do consultório.

Vejo entrar um garoto perfeitamente distraído com os movimentos acrobáticos, que é capaz de fazer com os dedos das duas mãos. O prontuário me diz que ele tem dois anos e dez meses e, por razões éticas, com recurso de metáfora, vou chamá-lo Victor.
Tensa, tragando as fumaças de um cigarro, a mãe informa disfarçando o nervosismo:


- Ele não fala, doutora. Às vezes, repete o que ouve. Para ele, simplesmente eu não existo.
Tanto faz eu como ninguém. É desligado. Ignora os perigos. Isso não liga para brinquedo, comida, nada. É isolado como uma ilha perdida. A gente pensa até que ele não vê direito ou não ouve bem.

A mãe disserta do lugar de quem já desertou do investimento afetivo. E, em desconsolo conformado, ela acrescenta:


- O pediatra acha que o problema dele é atraso mental.

Essa mãe, que pagou a devida consulta na entrada, faz a cobrança justa na saída;


- E aí, doutora, o que é que ele tem?

Adiei a resposta até que pude fazer jus à pergunta.


- Seu filho está apresentando um quadro clínico de autismo infantil.

Ela, precipitadamente, exclama:


- Então não é retardado?! Graças a Deus! Já estou mais aliviada.

Diante da situação de vexame, para onde ela me empurra, onde arranjar coragem para desiludi-la, justo agora que ela reacendeu a esperança? Como dizer: "A deficiência mental faz parte, madame?"
Rebusquei fonemas amortecedores de impacto e, alterando a sentença, disse-lhe:


- Olhe, vamos devagar. Trata-se de uma síndrome.

E ela, repartindo espanto com desconfiança:


- Síndrome?! Você não falou que era autismo?

Ajeitei minha firmeza e fiz valer a convicção:


- Disse, e repito: síndrome de autismo infantil.

Ela recompôs:


- Ah ... estou entendendo, o nome da coisa é que é mais comprido.

E repetiu "o nome da coisa" matutando:


- Autismo ... autismo ... Acho que já ouvi falar sobre isso.

Na seqüência da cena, sem perceber o desastre da inconveniência, reduziu o amparo dos meus
sapatos, metralhando na minha escuta:


- E o que é autismo? Qual a causa disso?

Divaguei entre as idéias e constatei que somente uma resposta seria honesta: "Mãe, desde 1943, quando o autismo infantil foi batizado por Leo Kanner, todos os profissionais da área estão fazendo a mesma pergunta". Entretanto, com a brasilidade de um patriota da medicina, dei tiro de meta para a seleção do meu pensamento e joguei lá no meio do campo:


- A clínica, minha senhora, tem nos ajudado a formar conceitos, mas, quanto às causas, o que existe atualmente é um time de hipóteses apostando tudo em disfunções orgânicas.

Dei-me, então, por feliz, quando me vi poupada, pela mãe, de um falatório didático sobre AUTISMO PRIMÁRIO DE KANNER, sem lesões neurológicas aparentes, e AUTISMO SECUNDÁRIO EM COMPORTAMENTO AUTÍSTICO de encefalopatas com lesões difusas.
Ocupei-me de Victor. Apesar dos meus tantos anos profissionais, lidando com autistas, revivo ali a sensação familiar de que aquela ... é a primeira vez. E assim, não consigo evitar as pontas de curiosidade onde arranho as angústias.

Começar por onde? Quero um contato, qualquer fiapo de relação. Convoco todas as minhas reservas empáticas, procuro determinar a face de Victor e lhe digo:


- Olá! Você aí! Como é seu nome?

Por resposta, escuto um eco fanhoso, desmodulado ... como se emitido de um outro mundo.


- CO - MO É SEU NONNN - ME ...

Num instante ecmnésico, lembro-me, então, de Kanner, Asperger, Mahler, Rutter, Tustin, Rimland, Bettelheim, Ritvo, Bion, Winnicott, Lang, Leboyer, Widlocher, Koupernick, Lebovici, nossos brasileiros e tantos outros que tentaram, via literatura, nos ensinar sobre autismo.
Trisco a sentença de Deslauniers, citação de Jerusalinsk: "A criança autista é aquela que jamais teve a experiência de um contato afetivo, porque lhe faltou capacidade para isso". Com humildade pensante,
intrometo o meu reparo: não seria, talvez, questão de oportunidade, chance?

Recomeço a investida, aprontando-me para exame. Sem encontrar os olhos da criança, faço-me próxima, recolhendo-a pelos ombros, numa tentativa física de tê-la comigo, no mesmo furo de um instante. Evoco Freud em seu artigo: "O Ego e o Id". E ali faço apelo às pulsões de vida. Mas, escutando as lições de Klein, apresso-me numa advertência: "Cuidado! É frágil! É corpo fragmentado, delicado, buquê de objetos parciais que não se totalizam".

Ao meu toque energizado, para uma troca que fale de vida, Victor se enrigece e, com indiferença desconcertante, retrai-se; desvencilha-se, como pequeno bloco de lápide fria. Tento sentir aquele ato de recusa. Teria se retirado para os objetos internos como Meltz dizia? Nesse momento, Lacan e seguidores fazem, então, um sopro no meu outro ouvido: "É carne cortada, no real devorada, é objeto "a" não caído, corpo sem ego, id fundido, encarnação fixa de um morto psíquico".

Resgato as palavras da mãe de Victor: "Isso não liga para brinquedo, comida, nada. É desligado. Ignora os perigos. É isolado como uma ilha perdida". Com efeito, nesse filho falta um selo, um timbre. Não foi unarizado, peninsulado a um outro materno. É corpo solto. Tem "status" de ilha. É corpo estranho que,
mal nomeado, também não nomeia. Falta-lhe um significante que sustente as diferenças, sinalize as leis, desenhe os limites. Qual vitória terá vingado sobre o nome próprio de Victor? O que lhe teria ocorrido? Teria chegado com defeito de fábrica, causando repúdio ou veio como estrangeiro clandestino, sem o visto permitido? Teria sobrado no desejo materno, pelas prévias falhas narcísicas ou teria ele mesmo, corpo doente, aberto as feridas? Filho defeituoso ou filho do defeito?

Filho horror da castração ou filho mutilado no equipamento, o que importa agora, no minuto da clínica que ele é "aquilo" ou "isso". É pura coisa. É coisa incompreendida. E o nome clínico da coisa é autismo. Ou melhor, no dizer da mãe: "o nome da coisa é mais comprido".
Por força da minha formação mista em psiquiatria e neurologia da infância, coloco-me no hábito operante de observar os entraves do desenvolvimento das crianças com autismo, nos dois aspectos básicos: o psíquico e o orgânico. Observo que nenhuma ansiedade extra costuma assaltar necessariamente o profissional da neurologia, ao cabo de suas pesquisas, senão, certeza de que o pouco a ser oferecido se complementa na indicação de um programa educativo, onde se pode equacionar a consciência de tarefa pronta. Mas, se as crianças autistas são investi-gadas sob o olho
clíni-co da psicodinâ-mica, a angústia do profissional desperta e se inflama.

Na conduta neurológica, goza-se de uma relação interclínica objetiva, científica, com auxílio de instrumentos, que são respaldos concretos: o oftalmoscópio, a radiologia, o eletroencefalograma, os potenciais evocados, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. E de que nos fala hoje,
sobre autismo, todo o engenho destes apare-lhos?

O eletroencefalograma, o mais antigo ins-trumento de investigação neuro-fisiológica, mostra alterações que, segundo variadas pesquisas, são mais intensas quanto mais comprometidas estão as crianças autistas.

As áreas cerebrais indicadas como as mais atingidas nas psicoses autísticas são o telencéfalo(justificando distúrbios de linguagem ou os transtor-nos cogniti-vos), as áreas do diencéfalo, tronco cerebral e substância reticular (respondendo pelos transtornos adaptativos).

Estudos microscópicos revelam aumentos da densidade neuronal no pro-sencéfalo e redução das células de Purkinge no cerebelo, denunciando, assim, a ocorrência precoce das lesões incidentes na trigésima semana de vida.

Os potenciais evocados evidenciam anor-ma-lidades corticais.

As pesquisas de neurotransmissores apontam transtornos relativos às dopaminas, serotoninas e catecolaminas, que são substâncias importantes na regulação fisiológica dos estados emocionais.

Achados por tomografia e ressonância magnética mostram hipertrofia da região parieto-occipital esquerda, hipertrofia volumétrica do terceiro ventrículo e redução hipoplásica do cerebelo.

Enfim, as pesquisas que utilizam o PET (tomografia por emissão de positrons) descrevem aumento da utilização da glicose nos núcleos de base, tálamo, hipocampo e córtex.

Em contrapartida e à margem destas investigações armadas, numa conduta outra, ou seja, a da psicodinâmica, queda-se diante dos autistas, numa relação subjetiva, sem a garantia de quem transita nas veredas da ciência. Sem a sofisticação dos utensílios de apoio para exames, eis o que resta:
papel, lápis, alguns brinquedos e a ilusão de duas presenças. Aí, a questão pertinente advém de outros quesitos: "Como funcionam?" "O que será que desejam?" "Haverá demanda?"

Essas indagações se fazem legítimas, pois, se por força das desditas, as crianças com autismo se reduzem a coisas pela exclusão na linguagem, ainda assim são propostas humanas.

Quero um pouco mais dos autistas. E volto para Victor. Não parece dos mais regredidos, mesmo assim, um enigma. Fui onde pude, rastreando o orgânico, mas as disfunções sobraram todas para o psíquico.

Aquilato o destino de Victor em conversa com meus botões. Melhor seria, Victor, se você fosse esquizofrênico. Assim teria um ego fragmentado, mas, de qualquer forma, um ego, e já seria uma vantagem sobre quem só dispõe de um corpo, ainda mais estilhaçado. Se esquizofrênico, teria também direito a umas tantas imagens, ainda que alucinadas. Mas, reduzido ao real, no dito de Lefort (l983), como fazer projeções em algum ponto do espaço?

Se ao menos fosse um psicótico simbiótico, também estaria sorteado com uma imagem. Não seria uma imagem de si mesmo, constituído como um outro, num espelhamento verdadeiro, mas, ao menos, se refletiria como um prolonga-mento da mãe na dança colada das recíprocas passadas de um só desejo. Ao psicótico de Mahler, faltará o machado de um Outro paterno, mas restará o consolo de um outro na mãe. Ao simbiótico, faltará o simbólico, contudo, terá o imaginário de um ego ideal, ainda que parasita, suturando a falta. Mas para Victor, até a função materna restou muda, sem lugar de encontro. Não tendo sido falo, nem contemplado em um giro, Victor sobrará sem fala, como coisa, "ilha perdida".

É duro, Victor, saber com Mannoni (1973), que até o Selvagem de Aucyron ganhou de você no mundo dos signos, pois, apesar da primitiva convivência entre lobos, a ele, foi dado conhecer o valor dos sinais nas pegadas das presas ou no cheiro do perigo.

Victor, corpo doente, privado em sua vez de se constituir sujeito. Nem imagem, nem símbolo. Sem grande ou pequeno outro, sinto pairar, entre Victor e aquela que gestou seu corpo, as únicas imagens possíveis: as imagens bilaterais delineadas pelo desejo de fim ou de coisa nenhuma.

E eu, com ele, por onde faço o começo? Estamos sós, lado a lado, na dimensão da clínica. Mas qual espaço é o dele? Com certeza, o do lado de fora dos intercâmbios. Cinjo, então, Victor sob meu olhar, que se pretende cristal polido. Entretanto, Victor não me olha, não me vê. Não se pode enxergar num
espelho. Está ocupado com seus dedos-objetos em estado de vampiro. É feto que deambula sem cordão e sem placenta. Neste ponto, tomo um susto de ânimo, atingida pelas palavras do Seminário número um de Françoise Dolto: "Os psicóticos vivem nas pulsões de morte e, para tratá-los, é preciso que isso lhes seja dito. Antecipando-se a qualquer protesto, ela ainda garante que a criança é um ser
de palavra mesmo antes de estar nascida.

Em Victor, contudo, onde fincar um alvo com vocábulos? Como produzir amálgama nos pedaços de sua matéria? Em qual borda sua pulsão faz curva?

Não há mais que uma escolha. É apostar no vazio e jogar com tudo. Faço-me prótese, um outro, referência de falta, mediação, escuta ... um desafio de propostas na esperança animada que esse corpo-coisa encontre um lugar e seja recebido em seus acontecimentos orgânicos e, assim, possa se conectar, ou tomar, talvez, no ser, um sentido.

Cavo a emoção de um circuito pela marcação da diferença. Nomear, reconhecer, fazer giro ... Esforço pungente. Artesanato de corte e sutura. Tento pulsar algo que desperte qualquer raio de reflexo na direção da falta, rumo ao significante. Ajo por mim, imagino por ele. Mimetizando-o também em seus gestos ou sons fortuitos, espero capturá-lo em qualquer fio de signo que possa ascendê-lo à interlocução de um espelhamento simétrico. Do continente à ilha, arrisco um túnel. Provoco a fenda.
Combino construção e cumplicidade de duplo sobre o esquema desse corpo sem laços, tentando unificá-lo, promovê-lo pela passagem estreita da dor de um buraco real à angústia de uma falta simbólica. Do meu lugar de mediador do Outro concebendo espaço de significante, persigo brechas de simbolizações possíveis para uma Escritura sobre data que se faz vencida.

Ainda assim, abraço a luta, porque entendo que o autista não se resume numa pilhagem de desacertos cognitivos, mas é, antes de tudo, escombro social, escória psico-afetiva.

Com a ênfase das causas do autismo sobre lesões do soma, é o fator culpabilização dos pais que vacila, mas as questões relacionais daquelas crianças persistem. A interação pais-filhos não cessa no corpo doente, subexiste com papel preponderante enquanto ajuda ou empecilho.

Ao conjugar recursos de técnicas, não se almeja anular as insuficiências destas estruturas, nem suprir os traços ausentes das identificações primárias do triângulo edípico. O que se visa é reduzir algumas gotas dos tantos efeitos lesivos. E neste solo, toda oferta é rica.

Em caminhadas profissionais com crianças psicóticas apenas trabalho, deixando que elas me surpreendam com indicadores de imagens, mesmo que tênues e descontínuas. Aguardo a humanização das palavras novas ou sinais quaisquer de socialização, especialmente a colheita da felicidade de alguma sorte afetiva.

Com Victor trabalho exaustivamente sabendo o que me espera: só pequenos rendimentos. Porém, deixo-me correr atrás desse pouco, sem pretensões onipotentes.

Aprendi, ao longo do percurso, que autistas são também seres sensíveis, mas, que a despeito de nossa ânsia, somente se deixam abrir, no código íntimo, em ocasiões tão raras quanto achados em conchas que escondem pérolas autênticas.

Em muitos anos de serviço com autistas, não cheguei a fazer um colar com aquelas pérolas, talvez alianças solitárias, que muito honram as promessas do meu diploma e que tanto acrescentam à esmeralda esperança do meu anel de formatura.

Assim, aos que se erguem na imprudência, exigindo que psiquiatras e psicoterapeutas deixem os autistas nos braços da neurologia, das pesquisas de laboratórios e das técnicas educativas, entrego, finalizando, o que há de útil para autismo no seio de uma pergunta: melhor que o peso radical dos protestos, não seria, talvez, a leveza das aberturas?




Trabalho apresentado em mesa redonda no XII Congresso Brasileiro de Neurologia e Psiquiatria
Infantil. Setembro de 1993. Recife-PE.

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