segunda-feira, 6 de junho de 2011

A história do autismo

Claudia Mascarenhas-Fernandes


A criança autista indiscutivelmente interroga. Não há dúvida que, no mundo
atual, pleno de “performances” e “resultados”, que promete o “sucesso” e a
“felicidade”, a criança portadora de autismo vem apontar o furo dessa
promessa. A idéia da mudança rápida e do descartável é incompatível: não
toleram nem o imprevisto e nem mudanças, e, se não podemos prestar
atenção aos mínimos detalhes de seus movimentos em relação ao outro, não
temos chances. O fenômeno do autismo nos faz pensar, falar, escrever...
“Atualmente é considerado portador de autismo aquela criança que tem
dificuldades específicas de se comunicar e de se socializar, que apresenta
interesses restritos e comportamentos estereotipados, tendo iniciado com
essas dificuldades antes dos 3 anos e fixado até idade adulta”1.
Segundo Maleval2 o termo autismo ficará marcado por sua origem na clinica da
esquizofrenia, quando foi definido por Bleuler, para falar daquelas crianças que
se voltavam para elas próprias num mundo auto-erótico, “fica difícil até hoje
apreender o termo autismo sem passar pelo prisma deformante da psicose”3.
1 J. Hocchman, Histoire de l´autisme. Paris : Odile jacob, 2009. p. 27
2 J.C. Maleval
3 Idem, p. 10.

Um pouco da historia do autismo
Hocchman4 historia o autismo partindo do conceito psiquiátrico de idiota, do
homem privado de razão, isolado da sociedade com uma linguagem
desprovida de significação, o termo é precursor tanto da noção de
esquizofrenia infantil quanto do conceito de autismo5. Seguindo a saga da
exclusão, o idiota foi, dentre os pacientes da psiquiatria, dos mais
negligenciados, pelos administradores e psiquiatras que queriam o excluir de
seu território. Mas o autismo, nesse aspecto difere da idiotia, pois como
fenômeno, desperta entre os profissionais uma irresistível necessidade de
tomá-lo para si: quem tem a cura, quem tem o melhor tratamento, que
descobre sua etiologia, enfim, o autista tem promovido as mais diversas
disputas e contradições. Enfrentamos no momento atual, talvez, o ápice da
diferença entre psicopatologia e organicismo e, portanto, a tendência a colocar
o autismo a uma condição de handcap esteja forte, distanciando-o das
abordagens mais psicodinâmicas.
Uma primeira versão do autismo, portanto, foi cunhada por Bleuler em 1911,
que a define como uma função complexa em que a relação com a realidade é
perturbada ou suspensa, em conseqüência de uma perturbação primaria de
associações e surgimento de emoções e imagens fugidias6. Esse retorno ao
sujeito ao seu mundo interior, essa submissão imaginária, essa espécie de
adesão a uma nova realidade que vem recobrir a realidade tomada a distancia,
representa uma segunda spaltung, onde o sujeito não é apenas dividido, mas
separado do seu mundo.
4 Hocchman, idem.
5 Idem, p. 31.
6 J. Hocchman, Idem, p. 204.


A evolução do termo idiotia também derivou o termo esquizofrenia infantil. O
paciente Dick, que hoje em dia poderia ser classificado como autista, segundo
Klein sua psicanalista, era portador de esquizofrenia infantil. Klein se interessa
muito pouco pela etiologia da patologia de Dick, que considerava sofrendo, não
de perturbações de seu meio familiar, mas de uma incapacidade inata
constitucional de suportar a angustia, e que o levou a operar uma espécie de
amputação de seu psiquismo habitado pela violência e rejeitar, para se
proteger, todas as tendências destrutivas. Por conta disso, ficar privado de
qualquer atividade simbólica. O paciente foi enviado a Klein com o diagnostico
de demência precoce, mas o termo não era satisfatório porque esta era
definida como secundaria a um primeiro desenvolvimento normal. Segundo
Klein, que afirmava ser o tratamento da psicose infantil uma das principais
tarefas da psicanálise, a esquizofrenia infantil é semelhante a do adulto,
apenas com sintomatologia menos clara, mais discreta. Já Lauretta Bender se
refere a uma perturbação de integração que toca o desenvolvimento de uma
criança ainda inacabada: “a esquizofrenia na infância pode se definir como uma
forma de encefalopatia que aparece em diversos momentos da curva do
desenvolvimento, interferindo no desenvolvimento da unidade biológica e da
personalidade social, de modo característico e que em relação a frustração,
envolve uma angustia à qual o individuo reage com suas próprias
capacidades”7. O problema da criança portadora da esquizofrenia é, segundo a
psiquiatra, sua incapacidade de se identificar como diferente dos outros e então
entrar em relação com o mundo, fonte de angustias e de enfrentar as reações


7 J. Hocchman, l´hisoire de l´autisme, idem, p. 323.


de proteção contra essa angustia. Lauretta Bender conjuga aspectos
psicopatológicos e organicistas no seu modo de ver a esquizofrenia infantil.
O autismo foi visto por Bleurer e por Lauretta Bender também como um
mecanismo de defesa secundário, uma volta a si mesmo para se proteger dos
efeitos da dissociação ou da falta de integração das idéias e sentimentos. É
Kanner em 1943 que vai modificar essa concepção, descrevendo o autismo
como perturbação inata do contato afetivo, e vai colocar a perturbação não
como conseqüência, mas como um fracasso inicial fundamental. É essa
posição que vai separar definitivamente o autismo da esquizofrenia infantil.
Então Kanner, impressionado pela distancia emocional que essas crianças
colocam entre ela e os outros, insiste em dois sintomas fundamentais: solidão e
imutabilidade, assim como as cóleras violentas, que ocorrem, sobretudo,
quando se tenta barrar as rotinas e as estereotipias. A posição de Kanner é,
portanto, ligada a psicopatologia, sem ser psicanalista, coloca a reação de
angustia da criança no centro de suas preocupações. Diferentemente da
esquizofrenia infantil, que aparece após certa latência e se manifesta por uma
deteriorização, ou regressão, o autismo tem como sinal patognomônico a
inabilidade das crianças de estabelecerem relações normais com as pessoas e
a reagir normalmente desde o início da vida. E diferentemente da esquizofrenia
infantil, o autismo apesar da dificuldade de estabelecer relações com as
pessoas, possui um grande interesse de estabelecer relações com os objetos,
muitas vezes dedicando a estes uma atenção exagerada.
Quase no mesmo momento que Kanner estabelece os parâmetros do autismo
como perturbação inata do contato afetivo, Hans Asperger publica sua tese
intitulada “As psicopatias autísticas durante a infancia”, por conta da falta de
comunicação durante a guerra ele não teve acesso possivelmente ao artigo de
Kanner, sendo o seu publicado num tratado de pedagogia, tendência de um
movimento pedagógico curativo seguido pelo autor. A diferença entre os dois
textos citada por Arn Van Krevelen (op. Cit Hocchman)8, é que Kanner
descreve uma doença em curso, quer dizer um processo evolutivo, e Asperger
se dá conta de um tipo de personalidade que existe desde a infância e se
prolonga durante a vida adulta. Asperger inova no seu estudo sobre o exercício
intelectual do autista, difere de Kanner que acha que todos os autistas são
inteligentes, Asperger aceita que pode estar ligado a um déficit intelectual, e
afirma que o autismo é um estado (uma estrutura patológica da personalidade)
e não uma psicose (uma doença evolutiva). E contrariamente a Kanner não
acredita que os autistas possuem uma angustia importante em seu quadro
clinico. Atualmente a síndrome de Asperger é vista independente do autismo,
se manifesta mais tardiamente e tem melhor prognóstico.
Margaret Mahler por sua vez fará uma diferença entre esquizofrenia infantil e
psicose infantil. Vai optar por usar o termo psicose infantil e assim diferenciar
definitivamente das patologias dos adultos, definindo a criança psicótica como
uma criança que se mostra intrinsecamente capaz de fazer contato afetivo com
os outros. Ela acredita numa incompatibilidade biológica entre mãe e criança
de origem fetal, e deste modo as diferencia das crianças que possuem uma
importante carência afetiva, como as crianças criadas em campos de
concentração, pois, mesmo que tenham um retardo de maturação, são
capazes de retirar do entorno a mínima gota de humanidade a partir da mínima
estimulação. Ela define as psicoses autisticas, quando os sintomas são
precoces e aparecem desde o primeiro ano de vida, essas crianças ficam
perdidas, desorientadas, possuem uma ausência de antecipação postural,
ausência de sorriso, olhar vago e podem ocorrer as crises de cóleras quando
perturbados pelo outro. Essas crises ela interpreta como crises que tentam
restabelecer o equilíbrio interior da criança. Depois vem as psicoses
simbióticas, onde os sintomas aparecem depois do terceiro ano de vida, e as
psicoses benignas, que são tradutoras de sintomas neuróticos, esta ultima
categoria, depois de algumas criticas foi abandonada pela autora. Mahler faz
uma comparação interessante às crianças autistas, diz que elas são como
mágicos que fazem desaparecer tudo que esta em sua volta. Segundo a autora
é preciso separar as duas condições (psicose autística e psicose simbiótica)
pois, isso determinará a atitude do terapeuta. Em relação às crianças com
psicoses autisticas, ela aconselha inicialmente construir uma relação,
colocando ênfase em retirar a criança da sua concha, levando-a a perceber e a
investir na relação com outro, antes mesmo de estabelecer uma relação de
ajuda, ela usa o termo que equivaleria ao termo “seduzir”. Acredita que
devemos ficar moderados em relação a apreciação dos resultados do trabalho,
principalmente em relação aos pais, para evitar dar falsas esperanças, pois
depois de uma primeira melhora da criança, pode ocorrer um recuo se a família
ou profissionais começam a se animar e a solicitar muito energicamente a
criança para que saia do seu autismo ou da sua simbiose.


Os últimos debates
Depois de trinta anos de trabalho da corrente psicodinâmica e psicopatológica,
com influencias da psicanálise, uma reviravolta se processa no campo da
saúde mental. Essa reviravolta se denomina um progresso científico e se
caracteriza por um retorno ao organicismo a as teses de degenerescência,
reformuladas na linguagem da genética moderna, e o que esse movimento tem
de maior conseqüência é transpor a idéia do autismo como doença (processo
evolutivo, ligado a vários agentes patógenos, que mesmo que ainda possam
ser incuráveis, se trabalha no sentido de encontrar a sua cura), para a idéia do
autismo como handcap (desviação fixa da norma, composta de um déficit e
uma incapacidade, que coloca o individuo em situação de desadaptação com o
meio, necessitando uma reabilitação). Esse deslizamento de conceitos torna o
autista um ser passivo, que, considerado autista um dia, sempre será autista.
Essa orientação se inicia nos anos 60 nos Estados Unidos. Em 1971 Kanner
funda, a pedido de um pai de autista e editor, uma revista Journal of autism and
childhood schizofrenia, que nesse momento tinha colaboradores importantes
neurologistas, psicanalistas, psiquiatras. A psicanálise e seus representantes
estavam entres seus autores. Mas cinco anos mais tarde, sem nenhuma
novidade nas descobertas sobre o autismo e quando ainda se mantinha a idéia
da diversidade dos casos e conseqüentemente da necessidade da diversidade
de práticas, a revista fundada por Kanner muda radicalmente, torna-se journal
of autism and developmental disorders e Eric Schoppler toma sua direção
como editor. Nesse editorial afirmam que segundo “numeráveis pesquisas” o
tratamento e a compreensão do autismo dependem de fatores do
desenvolvimento, além de colocarem ênfase no retardo mental que seria
sofrido supostamente pela maioria dos autistas (de fato as pesquisas
mostravam que apenas 10 a 20% tinham retardo mental). Seu objetivo foi
conseguido, pois o autismo se torna rapidamente uma perturbação do
desenvolvimento, e toda perspectiva psicodinâmica desaparece sumariamente
dos editoriais. O livro desses dois editores, Schoppler e Rutter, se tornam
exemplares do novo pensamento sobre o autismo. Dois fatores ajudaram
nessa virada do poder: a pressão dos familiares e um texto de lei promulgado.
O autismo precisava de atendimento especializado e a pressão dos pais foi
decisiva, acompanhando a mudança do editorial da revista. A opinião das
famílias foi se tornando cada vez mais uma opinião científica, chegando a
orientar e financiar pesquisas sobre o assunto.
A psicanálise que tratou durante trinta anos os autistas era a única via na
época que poderia salvar a criança autista de uma internação e ali os pais e
crianças tinham uma escuta, porém isso poderia se reverter contra a própria
psicanálise, dado que escutar os pais e as crianças faria ela própria parecer
perigosa para a paz interior destes, remoendo os fantasmas mais difíceis
diante de uma criança autista. Mas de todo modo o que parecia mais complexo
era admitir que não era a psicanálise que inventava esses fantasmas, caso
eles aparecessem. Para as famílias começa a ficar mais fácil tratar seus filhos
como handcaps que precisariam de uma reabilitação, do que passar todos os
sortilégios de uma doença, ainda inexplicável, mesmo que tenha um percurso
evolutivo. O que precisa ficar claro aqui, que talvez não o seja para essas
famílias, é o fundamento que está implícito: o handcap é uma condição
imutável podendo apena ser adaptada ao meio.
Alguma teoria precisava se adequar a esse novo pensamento. O behaviorismo
seria ela: “todo comportamento, aquele do homem e aquele do rato, podem se
resumir a uma resposta à um estimulo”, afirmava Skinner, agregando a idéia de
que se não temos meios científicos para trabalhar e conhecer a mente humana,
é preciso desconsiderá-la, e de fato, acreditava ele, isso não trará nenhum
efeito negativo aos estudos científicos. Um aprimoramento nessa idéia foi
acrescido: “certas contingências de um ato aumentam a probabilidade de
ocorrer novamente e ao mesmo tempo, cria condições que podem ser sentidas,
o que achamos digno em um comportamento está ligado a reforços positivos”.
Como os estados mentais precisam ter direito a uma teorização, a famosa
caixa preta (a MENTE) dos behavioristas, se torna acessível aos cognitivistas.
Os behavioristas perderam terreno com isso, lhes restavam se converter em
ciências aplicadas a educação, por exemplo, no controle de comportamentos
socialmente desviantes: delinqüência, alcoolismo, perturbações sexuais e
toxicomanias. Eles dão a essa abordagem do behaviorismo aplicado o nome
de Applied Behavior Analysis, ABA, e, criam um segundo jornal Journal of
Applied Behavior Analysis.
Ferster, publica então no Journal of experimental Analysis of behavior, o
tratamento comportamental de duas crianças autistas, uma hoje se sabe que
tinha uma síndrome desintegrativa secundaria a uma encefalopatia. É, no
entanto, segundo Hocchman, curioso notar que o autor se refere a depressão
materna aguda. E com esse texto foi demonstrada a possibilidade de alargar a
gama de comportamentos socialmente adaptados de uma criança
profundamente autista. Mas é Lovaas que se mostra mais audacioso, ele que
era inicialmente um pesquisador de laboratório, tinha o objetivo de isolar e
controlar as variáveis num quadro experimental rigoroso. A hipótese de base
era que numerosos comportamentos sociais e intelectuais são regulados por
funções adquiridas a partir das primeiras interações com o meio, olhar e
sorriso. A criança autista se fechava em comportamentos de automutilação e
autoestimulação que paralisavam suas aprendizagens, daí a necessidade de
eliminar esses comportamentos inapropriados. Trabalhará com quatro
comportamentos indesejáveis: automutilação, ecolalia, estímulos
autosensoriais estereotipados e crises auto agressivas. Atualmente seguindo
pesquisas que permitem melhor codificar o projeto, fragmentam em pequenas
etapas a constituição do comportamento desejável e de eliminação do
inadaptado, e os reforços dolorosos parecem ter sido abandonados.
O texto de 1987 de Lovaas que promoveu esperanças no tratamento do
autismo deu inicio a um projeto “University of California at Los Angeles (UCLA)
Young Autism Project - UCLA YAP, de 1970 à 1984. Nesse estudo sete dos
dezenove sujeitos do experimento foram vistos entre 1970 e 1974, e depois um
estudo foi seguido de 1984 a 1985. A experiência foi publicada em 1987 e o
estudo do seguimento em 1993, o que faz pensar a pesquisa como sendo mais
recente do que foi. As crianças estudadas tinha menos que 46 meses,
passavam pelo tratamento durante quarenta horas semanais durante no
mínimo dois anos. Os resultados foram que nove dessas crianças não
precisaram ir numa escola especializada. O artigo de Victoria Seha9, no
entanto questiona de modo rigoroso esse “sucesso” do método de Lovaas,
resumo aqui algumas das principais críticas:
- Falta de randomização dos sujeitos e do grupo controle
- Os grupos experimentais e os de controles não estavam equivalentes
9 Victoria SHEA, Revue commentée des articles consacrés à la méthode ABA (EIBI : Early intensive
behavioral intervention) de Lovaas, appliquée aux jeunes enfants avec autisme, Chapel Hill, Caroline du
Nord, USA – 2004.
- Os grupos experimentais não eram representativos da população de
crianças com autismo
- A ausência de dados sobre correspondência entre tratamento
administrado e tratamento previsto.
- Ausência de informações sobre eventuais intervenções suplementares
administradas simultaneamente.
- Falta de claridade quanto às quantidades dos tratamentos administrados
aos grupos controles.
- Avaliação dos resultados realizada muito tempo depois que os
tratamentos foram finalizados.
- Avaliações dos resultados não foram realizadas pelos profissionais
independentes da pesquisas.
- Avaliação dos resultados (classificações) que podem refletir mais fatores
políticos ou filosóficos que as competências reais da criança.
- Erros de avaliação resultante do uso de diferentes ferramentas de
medida do QI e do QD para diferentes crianças.
- Uso de estatística inabitual, como a idade mental pre-calculada, e uso
contestável de desvio de QI.
- A não inclusão de fatores humanos, como parentes e terapeutas, que
podem ter influenciado os resultados de modo significativo.
- Falta de recuo critico das apreciações dos familiares.
È notório que o enigma da criança autista provoca dificuldades até mesmo para
as ciências ditas mais científicas. A posição da psicanálise é apenas diferente,
sem grau de valoração, a diferença mais impactante é que a psicanálise
precisa tomar o sujeito no seu aspecto mais singular, não como uma
generalização, o que vai acarretar sempre uma busca para escrever sobre o
sujeito, mais especificamente, sobre aquele sujeito. E desse modo, longe de
generalizar sujeitos ou sintomas, a escrita da psicanálise é uma escrita do
analista.

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