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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
A CRIANÇA E A PRODUÇÃO CULTURAL
TEXTO SOBRE EDUCAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA
Edmir PERROTTI
Na maioria das vezes, os trabalhos em nossa área, por falta de uma delimitação teórica mais firme, acabam se transformando em um amontoado de afirmações contraditórias. Outras vezes, a falta de conceitos próprios obriga o estudioso a buscar instrumentalização em áreas afins. Todavia, quando utilizados na área específica da produção cultural para crianças, esses conceitos emprestados se revelam insuficientes e, ao invés de limparem o terreno, criam confusão maior.
Embora presente em todos momentos de nossas vidas, essa área jamais foi incluída em nossas discussões sobre a criança e a produção cultural que se destina à criança como ser político ou, antes, como ser totalmente marginalizado da vida política, condição que a aproxima de outros grupos estigmatizados: índios, analfabetos, doentes mentais, etc.
A criança: entre o natural e a história
Por muito tempo a sociedade fez e algumas ainda fazem, uma interpretação da criança como ser incompleto, que esta em constante transformação, necessitando de ser lapidada. Assim, o adulto sempre passa a exercer a função de condutor dessas lapidações, sempre baseados em critérios estabelecidos por eles.
Levando em consideração que a criança não é um simples organismo em mudança, não é apenas uma quantidade de anos, um dado etário, mas algo bem mais complexo e completo, acreditamos da necessidade de tal questão ser problematizada.
No entanto, algumas pesquisas vêm abrindo caminhos para a percepção da criança como algo mais que natural, mas sim percebendo-a como algo extremamente móvel, sujeito às inflexões do meio social e, portanto, histórico. Aqui, a criança longe de ser apenas um organismo em movimento, como de resto qualquer categoria etária, é também alguém profundamente enraizada em um tempo e um espaço, alguém que interage com estas categorias, que influência o meio onde vive e é influenciado por ele.
Assim, se a criança é um dado etário, natural, este dado está imerso na História e, conseqüentemente, é em relação a ela que esse etário se define. Logo, o ser criança não pode ser entendido apenas como um feixe de características naturais em desenvolvimento no tempo. Antes, tem de ser visto como um corpo complexo, sujeito a condições históricas e, por isso, variável. Se é verdade, ao menos em princípio, que todas as crianças crescem, é verdade, também, que a direção desse crescimento estará em relação constante com o ambiente sócio-cultural.
Dentro de uma concepção mais ampla, podemos dizer que essa criança vive dentro de uma cultura, na qual age tanto como processo como produto. Assim, a partir do momento que a criança é influenciada pelos costumes e hábitos criados pela “sociedade”, ela age como produto criado por essa sociedade. Por outro lado, quando ela passa a interferir e agir nessa sociedade, exercendo poder político de mudanças, ela passa a agir como processo, pois ela também passar a exercer influência sobre esta.
O lugar da criança na cultura
As abordagens da questão marcaram-se, de um modo geral, por uma mesma visão do que seja cultura. De forma implícita ou explícita, sempre se estabelece uma equivalência entre cultura e produto cultural, reduzindo o primeiro termo ao segundo. Cultura, então, aparece como sendo simplesmente o resultado de um processo, a herança social, o dado acabado, o objeto estático. Os produtos culturais seriam a expressão de um modo de vida determinado que, enquanto tal, se explicam e se justificam.
Assim, vista apenas como objetivação dos conteúdos simbólicos do grupo social, a função da produção cultural é de plasmar no espírito da criança o “subtratum” que a informa, cabendo ao destinatário do objeto tão-somente a assimilação desse dado acabado sobre o qual não deverá agir. Os objetos culturais, enquanto síntese de um momento determinado, esgotam-se pela transmissão-assimilação.
Tomada apenas como produto dado e concluído que se autojustifica, a cultura torna-se objeto opaco, sem vida, mensurável, verificável e passível de ser mercantilizado, já que é descartada de quem a produziu e do próprio sistema de produção.
A produção cultural, por ir supostamente realizando as sínteses do grupo social, deve, nessa visão, ser necessariamente assimilada por todos, que isto é condição indispensável para a inclusão do indivíduo no grupo. Como lembra Chauí (1982), a cultura se transforma em guia prático para viver corretamente (orientando a alimentação, a sexualidade, o trabalho, o gosto, o lazer) e, conseqüentemente, em poderoso elemento de intimidação social. Quem não a possui está fadado à exclusão social.
Tal concepção de cultura ajusta-se, por sua vez, com facilidade, às concepções de criança vigentes em nossa sociedade. Assim, enquanto faixa etária “incompleta”, a criança deve ser a consumidora passiva de produtos culturais elaborados para ela pelo grupo social, a fim de que possa tornar-se um ser humano evoluído, “completo”, vale dizer, adulto. Sua inclusão social (isto é, inclusão nas classes dominantes) está garantida pelo consumo (ao menos simbolicamente).
Essa visão redutora da cultura ajusta-se ainda, evidentemente, aos desígnios da sociedade que a promove, sociedade baseada na desigualdade que privilegia certos grupos em detrimento de outros. Em tais condições, a criança passa a ser somente o depositário de um mundo criado pelo adulto, sem ter jamais reconhecidos os seus direitos de intervir ativamente no processo sócio-cultural que lhe diz respeito. A cultura passa a exercer uma função domesticadora e coercitiva, dificultando a participação da criança na História enquanto sujeito.
Esse enfoque estático da cultura implica outro problema, além do da discriminação etária. Trata-se da discriminação social. Ao se fetichizar a cultura, tornando-a necessária para todos os elementos do grupo social, impõe-se às crianças das classes menos privilegiadas uma cultura produzida pelas classes dominantes, pois o “cultural” em nossa sociedade define-se não somente por posições “adultocêntricas”, mas, sobretudo, por posições classistas. Em última análise, trata-se veiculação, através da produção cultural, dos conteúdos ideológicos das classes dominantes para todas as classes sociais.
Tomar, portanto, a cultura apenas como um produto acabado a ser transmitido para a criança significa inverter as relações de um processo onde as coisas passam a ter vida e as pessoas a serem vistas como coisas. Em outras palavras, significa a reificação da criança, situação a que se acham condenados todos aqueles que foram excluídos da cultura enquanto elementos participantes, enquanto sujeitos.
Assim, não se pode, portanto, desabrigar a criança de seu lugar de agente para aí colocar-se uma produção cultural feita pelos adultos e que, transformada em fetiche, enquanto tal deve ser adorado, venerado pela criança, como se ali estivesse sua salvação.
Não é, pois, de se estranhar a grita geral dos estudiosos mais conscientes, que têm alertado ultimamente sobre o teor alienante de grande parte das obras colocadas à disposição da criança pelos vários meios de produção cultural. É que, no geral, essa produção está informada por essa concepção redutora da cultura; que concebe o objeto separado do sujeito; que, em última análise, escamoteia relações de dominação, ao desconsiderar o modo e as relações de produção que estão por baixo de todo produto cultural.
A criança enquanto produtora de cultura
Pensamos sempre na criança recebendo (ou não recebendo) cultura, e nunca na criança fazendo cultura ou, ainda, na criança recebendo e fazendo cultura ao mesmo tempo.
Situar a criança enquanto ser passivo, não é privilégio do pensamento conservador. Também discursos liberais de bons democratas marcaram-se pelo uso dos lugares-comuns da ideologia dominante ao perceberem a criança como elemento culturalmente passivo. Salvo raras exceções, nunca se pensou na criança como portador de uma cultura própria, viva, definida nos grupos infantis e que é do maior valor e significado. Negamos sistematicamente, também na reflexão, um lugar ativo à criança, ajustando, portanto, nossas visões às necessidades do sistema. Este define e classifica as pessoas sempre segundo o grau de envolvimento que elas mantenham com a produção.
Assim, é a categoria produtora que define os indivíduos em nossa sociedade. Isso significa dizer que são as leis da mercadoria que tentam fixar nosso valor e papel enquanto seres humanos. E as leis do sistema consideram-nos apenas enquanto produtores de mercadorias, enquanto força de trabalho. Nossa capacidade de produção é o que nos configura. É essa capacidade, essa força e energia que, alienada, possibilita a acumulação capitalista, a reprodução do capital, que, em uma palavra, possibilita o funcionamento da máquina capitalista. Daí a sociedade capitalista privilegiar o adulto, pois ele pode ser mais “produtivo” que a criança, dentro do modo como está organizada a produção. Daí o interesse pelo produtor começar a diminuir na medida em que sua força produtiva vai diminuindo. Se o abandono é completo nos países periféricos, nos desenvolvidos, que venceram o patamar econômico, a situação afetiva é pelo menos tão precária quanto – ou pior – em nosso país. Em todos os lugares, o velho é visto como um traste que atrapalha a produção dos mais novos, que atrapalha o ritmo devorador do sistema. E, como o velho, todas as categorias que, por uma razão ou outra, não se ajustam total ou parcialmente, ao sistema produtivo: loucos, deficientes físicos, artistas “rebeldes”, crianças, etc.
É evidente que essa categorização rígida que separa um adulto (ativo) de uma criança (passiva) responde antes a uma caracterização do sistema de produção que a uma característica intrínseca dos seres humanos. É o modo de produção que determina em última instância a possibilidade e, além disso, o reconhecimento da participação de um segmento no todo social e, em conseqüência, a não-participação de outros; a atividade de uns, a passividade de outros. Daí que essa oposição ativo/passivo, referindo-se à criança e ao adulto, é histórica e não natural.
A fragmentação dos homens em tempos estanques (infância-maturidade-velhice) e, pois, o resultado de uma situação histórica que trata o tempo humano como se este não fosse uma coisa total, unitária, simultânea. Assim, fica claro que a visão da criança enquanto ser culturalmente passivo estão ajustadas à ótica do sistema. É que ativo é somente aquele que produz para o sistema, aquele que possibilita sua manutenção, sua reprodução.
No entanto, mesmo inferiorizada, a cultura do povo é reconhecida, pois ela é entendida pela classe dominante como mal necessário, como coisa necessária para a sobrevivência de grupos economicamente ativos. Por outro lado, o reconhecimento, ainda que problematizado, fragmentado da cultura das classes trabalhadoras, possibilita-nos o entendimento da dupla exclusão que sofrem subgrupos culturais que, por uma razão ou outra, não participam do processo produtivo, mas pertencem às classes trabalhadoras. De uma parte, são discriminados por pertencerem a um grupo que não detém os meios de produção; de outra, por não produzirem.
O fato, no entanto, de esse sistema dominante só considerar como produtores de cultura os grupos economicamente ativos não significa que, paralelamente a essa cultura dominante, não se desenvolva uma outra com características próprias, com funções específicas. Na verdade, os oprimidos sussurram e desse modo resistem, preservam e recriam seu mundo. Se o sussurro não se expande é porque os mais fracos não encontram canais para tal. Todavia, isso não os impede de viverem, ainda que semiclandestinos, uma experiência forte, rica, variada. Experiência onde eles se reconhecem sujeitos, ativos, participantes, humanos.
Florestan Fernandes (1979) em seu estudo realizado em Bom Retiro, que a criança participa ativamente da cultura, criando-se e criando-a com feições próprias, com significados particulares, com funções semelhantes às funções da cultura vivida pelo adulto. Se há reconhecimento ou não, é um outro problema. As “trocinhas” mostram a capacidade humana de negar o papel destinado por um sistema a seus diversos componentes, sempre segundo os interesses daqueles que se encontram em posições privilegiadas dentro dele. Importa também perceber que a tentativa de impor características passivas ao seres humanos sejam de que idade forem, não corresponde à história real, à história vivida dos grupos.
O estudo de Florestan Fernandes (1979), nos leva a conclusão de que os grupos infantis criam uma cultura própria, viva, transmitida boca a boca e que, embora muitas vezes busque seus elementos na outra mais genérica, organizada pelos adultos, ainda assim, é re-elaborada, segundo suas necessidades, pelos grupos infantis que os transformam em algo próprio e diverso daquilo que lhes serviu de inspiração.
Outro fator que ajuda a reforçar a idéia de que a criança não é um ser passivo culturalmente, é a de que ela cria cultura, ainda que seu trabalho não seja reconhecido pelos adultos, uma vez que, como vimos, na sociedade capitalista somente os que produzem e reproduzem o sistema econômico são passíveis de reconhecimento, de identificação.
BIBLIOGRAFIA:
PERROTTI, E. A criança e a produção cultural. In: ZILBERMAN, R. A produção cultura para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto; 1982.
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