A marca do desencontro
Seres humanos têm disposição inata para relacionamentos e comunicação: somos sensíveis às expressões faciais, reagimos a elas. Nas crianças autistas, no entanto, algo falha nesse contato inicial – correlato da primeira mamada teórica de D. Winnicott
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Com Freud a neurose infantil apresentou-se como modelo do funcionamento da mente humana, tendo o complexo de Édipo como eixo organizador do entrelace das disposições inconscientes sobre a realidade. No entanto, como afirma o ex-presidente da International PsychoanalyticalAssociation (IPA) Serge Lebovici, psicanalistas contemporâneos de crianças vêm mostrando a importância de um segundo paradigma: o autismo infantil. Essa intrigante afirmação lançanos no campo das construções metapsicológicas provocadas pelo contato com a questão do autismo. Segundo o psicanalista inglês Donald Winnicott, há um longo percurso a ser feito antes que seja atingido o estágio de fusão entre mãe e bebê – fundamental para o desenvolvimento saudável. Ou seja, o estado indiscriminado que Winnicott descreve como matriz das primeiras relações mãe–bebê não é um dado inato, mas uma construção que se dá a partir de um primeiro patamar de desenvolvimento. O autismo denuncia essa necessidade de construção prévia, já que é uma condição em que, justamente, esse desenvolvimento fracassa e a fusão, a reciprocidade e comunicação mútua não ocorrem.
O filósofo e psicanalista Pierre Fédida concebe o autismo como “um estado de auto-erotismo sem Eros”. Assim como Sigmund Freud, e tal qual retomado posteriormente pela psicanalista francesa Marie-Christine Laznik, entendemos que, num primeiro momento, o bebê lança-se ao mundo em busca de um outro que satisfaça suas urgências instintuais. Posteriormente, quando as necessidades (de alimentação, por exemplo) não são imediatamente respondidas, a criança retorna para si, num movimento alucinatório de autosatisfação em que reedita o prazer que outrora obteve no contato com outra pessoa. Nesse segundo momento, o bebê volta-se para si impregnado do erotismo que lhe foi oferecido antes. Esse erotismo – ou seja, palavras, desejos e sensações que os outros deixaram impressos nele – é introjetado e transformado criativamente em pensamento.
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EM BUSCA de auto-satisfação, o bebê se volta para si mesmo e reedita o prazer que teve antes, no contato com o outro
SEM TRAÇO DO OUTRO
O livro Monólogos da infância, de Maria Francisca Lier de Vitto, dá continuidade à linha de pesquisa desenvolvida pela lingüista Ruth Weir, autora de Language in the crib, que atenta para as “conversas de berço” de crianças de 2 a 3 anos. Meninos e meninas nessa faixa etária são flagrados reproduzindo falas que lhes foram dirigidas durante o dia e, ao reproduzi-las, reeditam-nas, em plena “fabricação” de material para sonhar e pensar. As crianças de De Vito nos dão testemunho de um processo que se instalou nos primeiros momentos de vida, marcado por essa busca – encontro seguida de recolhimento organizador.
Um exemplo do monólogo de berço foi registrado no livro de De Vitto: “Num fala no meu nome/ Num fala no teu nome/ Num fala... midanoni/ Num fala...mianomi/ Num fa'a... midanomi/ Num fala no... nomi”, murmura Camilla, brasileira, 2 anos e 5 meses, transformando a fala de outra pessoa em idioma próprio.
Nos autistas inacessíveis isso não se dá. Fédida nos conta que, neles, a volta a si mesmo não traz marcas de investimentos eróticos, feitos por outras pessoas. É um “virar-se para si” sem traços de alteridade. É o que ele nomeia auto-erotismo sem Eros.
O que falha nos estados autísticos? Há algo nesse primeiro momento de busca de um outro que parece não transcorrer a contento. Examinemos então esse momento inicial no microscópio para entendermos mais sobre esses tempos pré-fusionais, pré-relacionais ou pré-bidimensionais.
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CRIANÇAS procuram contato afetivo com pessoas que cuidam delas: rostos funcionam como mapas de navegação
É notório para estudiosos das primeiríssimas relações que bebês vêm “munidos de um dispositivo” de procura e convocação de outro ser humano. Neuroembriologistas mostram que a região cerebral responsável pela identificação e escrutinamento de faces humanas é uma das únicas que já está pronta desde o nascimento. A criança nasce em posição de abertura para relação com um outro e, de fato, busca rostos humanos. Ao encontrá-los, os focaliza e passa a tê-los como “mapa de navegação”. Bebês são sensíveis às expressões faciais de seus cuidadores, reconhecem-nas e reagem a essas “bússolas de localização”.
Ao encontrar o outro, o bebê põe-se em estado de permeabilidade: essa é a disposição inata para relação e comunicação. Diferentes autores, de variadas abordagens, versaram sobre essa disposição, e encontramos na literatura as seguintes nomeações: “outro virtual”, de S. Braten, “permeabilidade biológica ao significante”, nas palavras de Maria Cristina Kupfer, ou ainda o termo “pré-concepção do objeto”, usado por Gilberto Safra.
Mas para que a procura se transforme em encontro essa face que o bebê descobre precisa se voltar para ele e se relacionar com ele. É esse investimento do cuidador em direção à criança que Manoel Tosta Berlinck, retomando Fédida, chama de erotização. E são esses elementos de acréscimo que se transformarão em matéria pensante no momento seguinte, de recolhimento. Nessa descoberta-encontro, o bebê não só conhece o outro, sintonizando-se, por exemplo, com suas expressões faciais, como também passa a conhecer a si mesmo pelo olhar, pela fala e pelo gestual que lhe são endereçados.
Nas crianças autistas, alguma coisa nesse primeiríssimo contato – correlato da primeira mamada teórica de Winnicott – falha. É possível conceber a etiologia do autismo pautada em dois pressupostos: o da interdependência do orgânico e do ambiental, e o do valor determinante, para a constituição da relação mãe–bebê, tanto do bebê e da mãe quanto do que se cria no contato de um com o outro.
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VÁRIOS AUTISMOS: muitas vezes é difícil discriminá-los das psicoses infantis
O autismo pode apoiar-se tanto em falhas orgânicas quanto ambientais, ou ainda em falhas orgânico-ambientais, já que sustentamos uma visão do ser humano que suporta a interdependência e o entrelaçamento do orgânico e do psíquico. Nas palavras do psicanalista Alfredo Jerusalinsky, “o aparecimento tanto de traços como de quadros autistas está inteiramente vinculado ao desequilíbrio do encontro entre o agente materno com a criança; este equilíbrio depende, por um lado, do status psíquico deste agente e, por outro, das condições constitucionais da criança para se apropriar dos registros imaginários simbólicos que entram no jogo do vínculo”.
DEPRESSÃO OU DISTRAÇÃO
Vamos nos esforçar na construção de hipóteses etiológicas com o intento de delinear melhor o campo da vivência autista. Todas as possibilidades apresentadas são construídas, por um lado, com base nos desdobramentos da lógica da metapsicologia aqui desenvolvida e, por outro (e isso é importante), partindo da implicação do analista na clínica com crianças autistas. Podemos conceber que o bebê, por alguma falha orgânica e/ou psíquica, não se ponha em estado de busca por não ter como pressuposto a existência de um outro para o contato.
Podemos ainda pensar em uma situação em que esse outro significativo não esteja disponível para ser encontrado – como pode ser o caso em mães fortemente deprimidas no pós-parto ou que por quaisquer outras razões psíquicas, orgânicas e/ou ambientais não possam oferecer-se e estar mentalmente presentes para o encontro com o bebê.
Ou bem não se busca, ou bem não se encontra. Não podemos deixar, contudo, de notar que pode haver desencontro entre a necessidade específica de um determinado bebê e as condições de presença de uma determinada mãe. Um bebê mais distraído pode pedir uma mãe um tanto mais presente para que o encontro se dê; ou ainda uma mãe deprimida, caso encontre um bebê bastante responsivo e vivaz, pode ser retirada por ele de sua retração depressiva. Ou seja, não são apenas os elementos isolados, a criança e o cuidador, que devem ser considerados, mas a interdependência deles.
BRIAN MCENTIRE/DREAMSTIME
CONVERSA PRECOCE: os pequenos costumam reproduzir falas que lhes foram dirigidas pelos adultos
Quando o encontro primordial não se dá, o primeiro elo do circuito pulsional constitutivo não surge. Esse não-encontro parece estar na fundação dos ditos autistas inacessíveis, de difícil contato (out of reach) ou autistas “de carapaça”, tal qual formulou Francês Tustin, em 1977.
São muitos os autismos, e com essa afirmação nos alinhamos a diversos autores contemporâneos que se dedicam à questão, tais como Sue Reid e Anna Alvarez, Paulina Rocha e Ana Elizabeth Cavalcanti, Jean-Noel Trouvé, Marie-Christine Laznick. Esses autores falam da importância de conceber um espectro autista que comporte uma variedade etiológica e caracteriológica.
Jean-Noel Trouvé afirma que “fica difícil separar clinicamente” os autismos do grupo mais polimorfo das psicoses infantis. Focalizo nesse texto duas caracterizações opostas nos extremos do continuum autista: os indivíduos inacessíveis e os pós-autistas ecolálicos. Estes últimos apresentam-se em zona de intersecção com os fenômenos psicóticos.
O campo relacional de que vínhamos falando diz respeito aos autistas “de carapaça” ou inacessíveis, que na presença de outras pessoas permanecem absortos em atividades que não incluem os demais de modo algum, parecem ignorar a existência dos outros e tratá-los como se fossem parte da mobília.
Falta ainda nos debruçar sobre os ditos pós-autistas ecolálicos. Por ecolalia entendemos a tendência a repetir sons e palavras. Embora cientes de uma eventual imprecisão etimológica, podemos estender a compreensão desse conceito ao analisar a reprodução de outros comportamentos, como falas e desenhos. Essas crianças realizam algum contato, sem no entanto conseguir se desvencilhar da literalidade do que lhes é oferecido. Emitem falas que parecem nada dizer, são capazes de reproduzir ipsis litteris conversas, músicas ou programas de rádio e apegam se a rituais e estereotipias.
DOSES HOMEOPÁTICAS
Voltemos ao circuito pulsional de que falávamos acima. Num terceiro momento do circuito pulsional descrito por Laznik, o bebê se oferece como objeto para seu cuidador, isto é, convoca a relação cuidadora, já do lugar daquele que é cuidado e desejado: se oferece para ser beijado, mordido, amado. Mostra, com isso, ter introjetado não apenas os elementos que compõem a si mesmo e ao outro, como também a configuração desse relacionamento.
Penso que nos casos dos pacientes que chamamos de ecolálicos é algo no caminho do segundo elo que se quebra. Ao voltar do encontro com o outro significativo, o sujeito pós-autista vê-se às voltas com a impossibilidade de processar as marcas que esse encontro lhe trouxe, seja porque seu aparato introjetivo é falho, seja porque o encontro se deu de forma excessiva e traumática, deixando restos indigeríveis.
Winnicott nos fala da imaturidade do ego do bebê, que, justamente por essa característica, precisa ter suas necessidades atendidas e sustentadas por outra pessoa sintonizada com ele. A mãe (ou qualquer outra figura significativa) funciona como filtro para garantir que o mundo seja apresentado à criança em doses homeopáticas e, desse modo, passíveis de serem digeridas e apropriadas por ele. Se, por algum infortúnio, esse anteparo não se oferece e o mundo é apresentado em doses cavalares, a criança parece então se ver impossibilitada de captar esses “restos de encontro” de maneira satisfatória. Caracteriza-se assim uma aproximação traumática para a criança.
Podemos ainda contar com a conjectura de um primeiro encontro em que o lugar do bebê não lhe seja devolvido. Isto é: ele volta prenhe de elementos identificatórios do outro, mas sem nenhum traço que o localize nessa fala, incapaz de se inserir no discurso e de retornar ao contato significativo, no lugar de objeto de desejo do outro, como vemos acontecer no terceiro momento do modelo de circuito pulsional de Laznik. A inversão pronominal, tão característica das falas ecolálicas, parece denunciar a dificuldade de conceber os lugares de um “eu” e um “você”, simultaneamente diferentes e comunicantes – moldura de sustentação da fala. Temos a impressão de que o “eu” se encontra justaposto ao “você”, sem nenhum espaço de diferenciação. São características do contato ecolálico o clamor por repetição e a excessiva proximidade com o objeto, presente nas reproduções sem lacunas.
RECORTAR E COLAR
Essas repetições sem lacunas produzem a estranha experiência de termos diante de nós alguém que personifica outra pessoa, como se a incorporasse. Lembro-me de ouvir uma menina ecolálica, de 6 anos, repetir a fala de sua avó de 65 anos, em tudo igual a ela: palavras, entonação e textura da voz. Era muito estranho ver uma garotinha soar exatamente como uma senhora, contrariando as leis do desenvolvimento da anatomia e fisiologia do aparato vocal.
Deparamos aqui com duas polaridades: ora a exclusão do inacessível, ora a invasão que se manifesta na ecolalia, ambas extremamente freqüentes na clínica de crianças autistas. Voltemos à afirmação inicial de Lebovici de que o estudo do autismo infantil revolucionou o campo psicanalítico. Diante da tendência à inacessibilidade, ao isolamento da exclusão, psicanalistas resgataram a necessidade de eles, assim como a mãe, convocar seu paciente ao contato. Nessa linha, Anne Alvarez construiu o conceito de reclaiming (reivindicação), inspirada pela observação de que, diante de bebês retraídos, distantes e alheios, a mãe “suficientemente boa” põe-se a chamar sua atenção por meio de movimentos burlescos, que exageram os gestos humanos, amplificando entonações e expressões faciais. Para aquele que encontra dificuldade em focar, tudo é amplificado para que algum contato se dê – e alguma figura se forme. É essa a função “reclamante” do analista na clínica com pessoas autistas. Dessa maneira, os conceitos de reserva do analista ganham nessa clínica outras dimensões, para além da neutralidade clássica.
Já o fenômeno ecolálico torna o analista ciente da necessidade do paciente autista de viver em câmera lenta a constituição da possibilidade de contato com um outro, de assim ampliar e reter a experiência.
A bióloga e engenheira americana autista Temple Grandin conta em sua autobiografia, Uma menina estranha (Companhia das Letras, 1999), que sua mente era como um vídeo que reproduzia incessantemente as imagens que captava ao redor, e que só se tornou capaz de pensar quando se interessou pelo funcionamento do mecanismo do aparelho de reprodução de vídeos, que permitia pausas. Foi assim que, com muito esforço, ela, de repente, se viu capaz de interromper o fluxo contínuo de impressões externas que caracterizava seu aparato mental. Fazemos referência aqui à necessidade de o “eu” se inserir nas reproduções mnemônicas totalizantes, recortando e tornando possível o esquecimento e apagamento – mas antes disso a experiência de contato precisa se constituir como uma certeza para o paciente.
O caminho é duplo, portanto: auxilia-se o paciente a se certificar de sua possibilidade de estar em contato com outra pessoa, permanecendo emaranhado em suas reproduções o tempo necessário, sem nunca, no entanto, se esquecer de que por trás dessa camada alienante, que caracteriza a ecolalia, há um sujeito que escolhe e fala, utilizando-se de suas “colagens”.
CONCEITOS-CHAVE
- O filósofo e psicanalista Pierre Fedida concebe o autismo como “um estado de auto-erotismo sem Eros”. Freud e a psicanalista francesa Marie-Christine Laznik entendem que, num primeiro momento, o bebê lança-se ao mundo em busca de um outro que satisfaça suas urgências instintuais.
- Quando esse contato primordial não ocorre, o primeiro elo do circuito pulsional constitutivo não surge. Esse não-encontro parece estar na fundação dos ditos autistas inacessíveis, de difícil contato (out of reach) ou autistas “de carapaça”.
- É possível conceber a etiologia do autismo com base em dois pressupostos: o da interdependência de aspectos orgânicos e ambientais, e o do valor determinante da constituição da relação mãe–bebê, tanto individualmente quanto para o contato de um com o outro. O autismo pode apoiar-se tanto em falhas orgânicas quanto ambientais, ou ainda em falhas orgânico-ambientais.
PARA CONHECER MAIS
Do silêncio ao eco: autismo e clínica psicanalítica. Luciana Pires. Edusp, 2007.
Os monólogos da criança: “delírios da língua”. M. F. Lier de Vitto. Educ, 1998.
Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos (1963). D. Winnicott, em O ambiente e os processos de maturação – Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Artes Médicas, 1983.
Autisme et psychoses de l'enfant. Frances Tustin. Seuil, 1977.
Vídeos:
Beautiful minds, a voyage into the brain, parte da série Expedition ins Gehirn, produzido por Colourfield Productions, Dortmund, Alemanha, no Youtube.
Desejo por ordem, da série O Viajante da Mente, criada por Oliver Sacks, GNT , Direção de Christopher Rawlence.
Luciana Pires é psicóloga, psicanalista, especialista em psicanálise com crianças, adolescentes e famílias pela Tavistock Clinic na Inglaterra, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Do silêncio ao eco: autismo e clínica psicanalítica (Edusp, 2007)
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DEPRESSÃO OU DISTRAÇÃO
Vamos nos esforçar na construção de hipóteses etiológicas com o intento de delinear melhor o campo da vivência autista. Todas as possibilidades apresentadas são construídas, por um lado, com base nos desdobramentos da lógica da metapsicologia aqui desenvolvida e, por outro (e isso é importante), partindo da implicação do analista na clínica com crianças autistas. Podemos conceber que o bebê, por alguma falha orgânica e/ou psíquica, não se ponha em estado de busca por não ter como pressuposto a existência de um outro para o contato.
Podemos ainda pensar em uma situação em que esse outro significativo não esteja disponível para ser encontrado – como pode ser o caso em mães fortemente deprimidas no pós-parto ou que por quaisquer outras razões psíquicas, orgânicas e/ou ambientais não possam oferecer-se e estar mentalmente presentes para o encontro com o bebê.
Ou bem não se busca, ou bem não se encontra. Não podemos deixar, contudo, de notar que pode haver desencontro entre a necessidade específica de um determinado bebê e as condições de presença de uma determinada mãe. Um bebê mais distraído pode pedir uma mãe um tanto mais presente para que o encontro se dê; ou ainda uma mãe deprimida, caso encontre um bebê bastante responsivo e vivaz, pode ser retirada por ele de sua retração depressiva. Ou seja, não são apenas os elementos isolados, a criança e o cuidador, que devem ser considerados, mas a interdependência deles.
BRIAN MCENTIRE/DREAMSTIME
CONVERSA PRECOCE: os pequenos costumam reproduzir falas que lhes foram dirigidas pelos adultos
Quando o encontro primordial não se dá, o primeiro elo do circuito pulsional constitutivo não surge. Esse não-encontro parece estar na fundação dos ditos autistas inacessíveis, de difícil contato (out of reach) ou autistas “de carapaça”, tal qual formulou Francês Tustin, em 1977.
São muitos os autismos, e com essa afirmação nos alinhamos a diversos autores contemporâneos que se dedicam à questão, tais como Sue Reid e Anna Alvarez, Paulina Rocha e Ana Elizabeth Cavalcanti, Jean-Noel Trouvé, Marie-Christine Laznick. Esses autores falam da importância de conceber um espectro autista que comporte uma variedade etiológica e caracteriológica.
Jean-Noel Trouvé afirma que “fica difícil separar clinicamente” os autismos do grupo mais polimorfo das psicoses infantis. Focalizo nesse texto duas caracterizações opostas nos extremos do continuum autista: os indivíduos inacessíveis e os pós-autistas ecolálicos. Estes últimos apresentam-se em zona de intersecção com os fenômenos psicóticos.
O campo relacional de que vínhamos falando diz respeito aos autistas “de carapaça” ou inacessíveis, que na presença de outras pessoas permanecem absortos em atividades que não incluem os demais de modo algum, parecem ignorar a existência dos outros e tratá-los como se fossem parte da mobília.
Falta ainda nos debruçar sobre os ditos pós-autistas ecolálicos. Por ecolalia entendemos a tendência a repetir sons e palavras. Embora cientes de uma eventual imprecisão etimológica, podemos estender a compreensão desse conceito ao analisar a reprodução de outros comportamentos, como falas e desenhos. Essas crianças realizam algum contato, sem no entanto conseguir se desvencilhar da literalidade do que lhes é oferecido. Emitem falas que parecem nada dizer, são capazes de reproduzir ipsis litteris conversas, músicas ou programas de rádio e apegam se a rituais e estereotipias.
DOSES HOMEOPÁTICAS
Voltemos ao circuito pulsional de que falávamos acima. Num terceiro momento do circuito pulsional descrito por Laznik, o bebê se oferece como objeto para seu cuidador, isto é, convoca a relação cuidadora, já do lugar daquele que é cuidado e desejado: se oferece para ser beijado, mordido, amado. Mostra, com isso, ter introjetado não apenas os elementos que compõem a si mesmo e ao outro, como também a configuração desse relacionamento.
Penso que nos casos dos pacientes que chamamos de ecolálicos é algo no caminho do segundo elo que se quebra. Ao voltar do encontro com o outro significativo, o sujeito pós-autista vê-se às voltas com a impossibilidade de processar as marcas que esse encontro lhe trouxe, seja porque seu aparato introjetivo é falho, seja porque o encontro se deu de forma excessiva e traumática, deixando restos indigeríveis.
Winnicott nos fala da imaturidade do ego do bebê, que, justamente por essa característica, precisa ter suas necessidades atendidas e sustentadas por outra pessoa sintonizada com ele. A mãe (ou qualquer outra figura significativa) funciona como filtro para garantir que o mundo seja apresentado à criança em doses homeopáticas e, desse modo, passíveis de serem digeridas e apropriadas por ele. Se, por algum infortúnio, esse anteparo não se oferece e o mundo é apresentado em doses cavalares, a criança parece então se ver impossibilitada de captar esses “restos de encontro” de maneira satisfatória. Caracteriza-se assim uma aproximação traumática para a criança.
Podemos ainda contar com a conjectura de um primeiro encontro em que o lugar do bebê não lhe seja devolvido. Isto é: ele volta prenhe de elementos identificatórios do outro, mas sem nenhum traço que o localize nessa fala, incapaz de se inserir no discurso e de retornar ao contato significativo, no lugar de objeto de desejo do outro, como vemos acontecer no terceiro momento do modelo de circuito pulsional de Laznik. A inversão pronominal, tão característica das falas ecolálicas, parece denunciar a dificuldade de conceber os lugares de um “eu” e um “você”, simultaneamente diferentes e comunicantes – moldura de sustentação da fala. Temos a impressão de que o “eu” se encontra justaposto ao “você”, sem nenhum espaço de diferenciação. São características do contato ecolálico o clamor por repetição e a excessiva proximidade com o objeto, presente nas reproduções sem lacunas.
RECORTAR E COLAR
Essas repetições sem lacunas produzem a estranha experiência de termos diante de nós alguém que personifica outra pessoa, como se a incorporasse. Lembro-me de ouvir uma menina ecolálica, de 6 anos, repetir a fala de sua avó de 65 anos, em tudo igual a ela: palavras, entonação e textura da voz. Era muito estranho ver uma garotinha soar exatamente como uma senhora, contrariando as leis do desenvolvimento da anatomia e fisiologia do aparato vocal.
Deparamos aqui com duas polaridades: ora a exclusão do inacessível, ora a invasão que se manifesta na ecolalia, ambas extremamente freqüentes na clínica de crianças autistas. Voltemos à afirmação inicial de Lebovici de que o estudo do autismo infantil revolucionou o campo psicanalítico. Diante da tendência à inacessibilidade, ao isolamento da exclusão, psicanalistas resgataram a necessidade de eles, assim como a mãe, convocar seu paciente ao contato. Nessa linha, Anne Alvarez construiu o conceito de reclaiming (reivindicação), inspirada pela observação de que, diante de bebês retraídos, distantes e alheios, a mãe “suficientemente boa” põe-se a chamar sua atenção por meio de movimentos burlescos, que exageram os gestos humanos, amplificando entonações e expressões faciais. Para aquele que encontra dificuldade em focar, tudo é amplificado para que algum contato se dê – e alguma figura se forme. É essa a função “reclamante” do analista na clínica com pessoas autistas. Dessa maneira, os conceitos de reserva do analista ganham nessa clínica outras dimensões, para além da neutralidade clássica.
Já o fenômeno ecolálico torna o analista ciente da necessidade do paciente autista de viver em câmera lenta a constituição da possibilidade de contato com um outro, de assim ampliar e reter a experiência.
A bióloga e engenheira americana autista Temple Grandin conta em sua autobiografia, Uma menina estranha (Companhia das Letras, 1999), que sua mente era como um vídeo que reproduzia incessantemente as imagens que captava ao redor, e que só se tornou capaz de pensar quando se interessou pelo funcionamento do mecanismo do aparelho de reprodução de vídeos, que permitia pausas. Foi assim que, com muito esforço, ela, de repente, se viu capaz de interromper o fluxo contínuo de impressões externas que caracterizava seu aparato mental. Fazemos referência aqui à necessidade de o “eu” se inserir nas reproduções mnemônicas totalizantes, recortando e tornando possível o esquecimento e apagamento – mas antes disso a experiência de contato precisa se constituir como uma certeza para o paciente.
O caminho é duplo, portanto: auxilia-se o paciente a se certificar de sua possibilidade de estar em contato com outra pessoa, permanecendo emaranhado em suas reproduções o tempo necessário, sem nunca, no entanto, se esquecer de que por trás dessa camada alienante, que caracteriza a ecolalia, há um sujeito que escolhe e fala, utilizando-se de suas “colagens”.
CONCEITOS-CHAVE
- O filósofo e psicanalista Pierre Fedida concebe o autismo como “um estado de auto-erotismo sem Eros”. Freud e a psicanalista francesa Marie-Christine Laznik entendem que, num primeiro momento, o bebê lança-se ao mundo em busca de um outro que satisfaça suas urgências instintuais.
- Quando esse contato primordial não ocorre, o primeiro elo do circuito pulsional constitutivo não surge. Esse não-encontro parece estar na fundação dos ditos autistas inacessíveis, de difícil contato (out of reach) ou autistas “de carapaça”.
- É possível conceber a etiologia do autismo com base em dois pressupostos: o da interdependência de aspectos orgânicos e ambientais, e o do valor determinante da constituição da relação mãe–bebê, tanto individualmente quanto para o contato de um com o outro. O autismo pode apoiar-se tanto em falhas orgânicas quanto ambientais, ou ainda em falhas orgânico-ambientais.
PARA CONHECER MAIS
Do silêncio ao eco: autismo e clínica psicanalítica. Luciana Pires. Edusp, 2007.
Os monólogos da criança: “delírios da língua”. M. F. Lier de Vitto. Educ, 1998.
Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos (1963). D. Winnicott, em O ambiente e os processos de maturação – Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Artes Médicas, 1983.
Autisme et psychoses de l'enfant. Frances Tustin. Seuil, 1977.
Vídeos:
Beautiful minds, a voyage into the brain, parte da série Expedition ins Gehirn, produzido por Colourfield Productions, Dortmund, Alemanha, no Youtube.
Desejo por ordem, da série O Viajante da Mente, criada por Oliver Sacks, GNT , Direção de Christopher Rawlence.
Luciana Pires é psicóloga, psicanalista, especialista em psicanálise com crianças, adolescentes e famílias pela Tavistock Clinic na Inglaterra, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Do silêncio ao eco: autismo e clínica psicanalítica (Edusp, 2007)
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/a_marca_do_desencontro_imprimir.html
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