domingo, 2 de outubro de 2011

E o medo venceu a ciência

Quando subiu ao palco para fazer seu discurso no encontro Idade do Autismo, em maio do ano passado, Andrew Wakefield não podia mais dizer que era médico. Apenas cinco dias antes, o Conselho Britânico de Medicina havia retirado seu nome dos registros do órgão e o proibido de praticar medicina no Reino Unido. Segundo o conselho, Wakefield havia fraudado suas pesquisas em que relacionava a vacinação com o desenvolvimento de autismo em crianças. Ainda assim, Andrew foi muito bem recebido no evento: deu autógrafos para pais de crianças autistas e foi aplaudido de pé pelo público. A verdade é que quanto mais ele caía em descrédito na comunidade científica, mais se tornava admirado e apoiado pelo movimento antivacinação. A história é parte de um fenômeno perigoso no campo científico: o medo de que as vacinas possam causar autismo. Essa crença se espalhou recentemente nos Estados Unidos, mesmo com diversas provas científicas em contrário. Uma pesquisa feita pela Universidade de Michigan mostra que 25% dos pais americanos acreditavam nos malefícios divulgados por Wakefield.

O ex-médico inglês é uma figura central nessa narrativa. Em 1998, ele publicou um estudo que comprovaria a ligação da vacina tríplice (que protege contra caxumba, sarampo e rubéola) com o autismo. Após investigar 12 crianças portadoras do distúrbio, chegou à conclusão de que em oito desses casos os sintomas do autismo começaram a aparecer

pelo menos duas semanas depois da vacinação. De acordo com Wakefield, o sistema imunológico de algumas crianças não estaria preparado para lidar com as três vacinas ao mesmo tempo, o que inflamaria seu intestino e levaria toxinas até o cérebro, causando o autismo. O estudo ganhou repercussão na mídia e chamou atenção dos cientistas.

Nos anos seguintes, pelo menos 12 grupos independentes de pesquisadores tentaram repetir o teste, mas não encontraram o mesmo resultado. Em 2010, o jornal científico The Lancet, que publicara o estudo originalmente, se retratou e o retirou de seu site. Em janeiro deste ano, um estudo publicado no British Medical Journal concluiu que o trabalho de Wakefield era uma fraude elaborada. E que a intenção do médico era lucrar com novos testes e tratamentos para o autismo. “Era ciência de má qualidade. Não convenceu nenhum cientista, mas ganhou a opinião pública”, disse o jornalista Set Mnookin, autor do livro The Panic Virus (O Vírus do Pânico, não publicado no Brasil). Depois de 12 anos, a pesquisa de Wakefield foi completamente desacreditada, mas o estrago já estava feito.

AMEAÇA INVISÍVEL
As conclusões do estudo acabaram chegando ao ouvido de pais e mães assustados, que passaram a desconfiar de qualquer vacina. Nos Estados Unidos, pelo menos 1% das crianças não recebem nenhum tipo de vacina, e 40% não seguem o cronograma correto de vacinação por causa do receio em torno dele. Em 2009, seis crianças do estado da Pensilvânia contraíram meningite por falta de vacinação — duas morreram. Em 2010, pelo menos 5,5 mil pessoas contraíram coqueluche na Califórnia, no maior surto da doença desde 1950.

Grande parte da repercussão do estudo de Wakefield ocorreu por causa da doença de que ele fala. Autismo, uma disfunção que afeta a capacidade da criança de se comunicar e se relacionar com o mundo, é considerada uma epidemia nos Estados Unidos. Os cientistas ainda não descobriram o que desencadeia esse distúrbio, mas ele costuma ser diagnosticado na infância, exatamente na fase onde as crianças estão sendo vacinadas. Em 1980, era diagnosticado um caso de autismo a cada mil crianças nos Estados Unidos. Hoje em dia, uma em cada 110 apresentam o problema, segundo o Centro para Controle e Previsão de Doenças do país. Mas parte dos médicos defende que isso se deve ao avanço na capacidade de diagnosticá-lo. Apesar de potencialmente letais, doenças como sarampo, coqueluche, tétano e rubéola estavam praticamente extintas, e grande parte dos pais nunca teve contato com elas. Entre a ameaça invisível dessas doenças e o alardeado surto de autismo, os pais acabaram escolhendo o primeiro.

Seth Mnookin defende que o estudo de Andrew Wakefield não teria nenhuma repercussão se não fossem seus colegas jornalistas. Anunciada com pompa numa coletiva de imprensa, a ligação entre vacinação e autismo ganhou as manchetes dos principais jornais ingleses, como o Guardian e o Independent. “Os jornalistas não atentaram nem para o fato de que a pesquisa foi feita com apenas 12 crianças”, disse Mnookin.

Na ânsia de apresentar os dois lados da questão, a imprensa mostrava acalorados debates entre cientistas e integrantes dos grupos antivacinação, compostos em sua maioria por pais de crianças autistas. Enquanto um dos lados apresentava relatórios e estudos científicos, os integrantes do segundo contavam sua própria história de sofrimento, além de mostrar estudos como o de Wakefield. E a emoção acabou por ganhar o debate.

Foi assim o caso de Jenny McCarthy, estereótipo de modelo e atriz gostosona, ex-namorada do comediante Jim Carrey e uma das principais defensoras da relação entre vacina e autismo. Ela conseguiu espaço em programas de TV de grande audiência nos Estados Unidos, como The Oprah Winfrey Show e Larry King Live, para contar a história de como os médicos haviam levado seu filho a desenvolver a doença. Certa vez, quando confrontada por um médico que pediu suas credenciais científicas, Jenny respondeu: “Eu não preciso disso, me formei na universidade do Google”. Como ela, muitos pais usam grupos online para se informar. “A ausência de confronto típica desses grupos de discussão cria a impressão de que seu ponto de vista seja majoritário”, diz Mnookin.

CONSPIRAÇÕES
Nos últimos anos, o pediatra americano Paul Offit tem se dedicado a ir contra o movimento antivacinação. Em seu último livro, Deadly Choices (Escolhas Mortais, sem edição brasileira), ele traça essa história desde a primeira vacina, em 1796. “Por conta de sua aplicação dolorosa, as pessoas pensam que a vacina pode ser perigosa. Mas o medo que existe hoje é o mesmo desde 1800, e acontece porque as pessoas não entendem como funciona”, diz. Ele liga a origem moderna desse medo ao documentário The Vaccine Roulette, exibido em 1982.

O esforço de Offit para esclarecer essa história vem de um motivo bastante pessoal: ele foi um dos inventores da vacina contra o rotavírus. “Essa controvérsia me deixa frustrado. Trabalhei 25 anos numa vacina que pode salvar 2 mil pessoas por dia. E eles me acusam de fazer parte de um complô entre o governo, médicos e a indústria farmacêutica para vender mais, mesmo que o custo disso seja o sofrimento de crianças.”

O fato é que a briga ainda não terminou. Sim: mesmo com o trabalho de Wakefield tendo caído por terra — no viés da teoria da conspiração, ele é “perseguido por dizer a verdade”. Para se ter uma ideia, o destaque de Offit na defesa da vacinação tem lhe rendido até ameaças de morte por pessoas que veem nele a cabeça pensante por trás de um complô. E apostam no medo para passar por cima da ciência.

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI236573-17773,00-E+O+MEDO+VENCEU+A+CIENCIA.html

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