terça-feira, 5 de abril de 2011

Autismo infantil

Francisco B Assumpção Jra e Ana Cristina M Pimentelb
aServiço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (SEPIA-IPq-HCFMUSP). bFundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG)

Introdução
Em 1942, Kanner descreveu sob o nome “distúrbios autísticos
do contacto afetivo” um quadro caracterizado por autismo extremo,
obsessividade, estereotipias e ecolalia.1 Esse conjunto
de sinais foi por ele visualizado como uma doença específica
relacionada a fenômenos da linha esquizofrênica.
Em trabalho de 1956, Kanner continua descrevendo o quadro
como uma “psicose”, referindo que todos os exames clínicos
e laboratoriais foram incapazes de fornecer dados consistentes
no que se relacionava à sua etiologia, diferenciando-o
dos quadros deficitários sensoriais, como a afasia congênita, e
dos quadros ligados às oligofrenias, novamente considerandoo
uma verdadeira psicose.

As primeiras alterações dessa concepção surgem a partir de
Ritvo (1976), que relaciona o autismo a um déficit cognitivo,
considerando-o não uma psicose e sim um distúrbio do desenvolvimento.
3 Dessa maneira, a relação autismo-deficiência mental
passa a ser cada vez mais considerada, levando-nos a uma situação
díspar entre as classificações francesa, americana e a da
Organização Mundial da Saúde. Assim, se as duas últimas (APA,
1995; WHO, 1993)4,5 enquadram o autismo dentro da categoria
“distúrbios abrangentes de desenvolvimento”, enfatizando a relação
autismo-cognição, de acordo com os trabalhos de Baron-
Cohen (1988, 1991),6,7 em oposição flagrante à CID-9; a primeira
(Misés, 1990)8 remete-nos ao conceito de “defeito de organização
ou desorganização da personalidade”,9 caracterizando o
conceito de “psicose”em sua expressão tradicional.
Outros autores, como Burack (1992),10 reforçam a idéia do
déficit cognitivo, frisando que o autismo tem sido, nos últimos
anos, enfocado sob uma ótica desenvolvimentista, sendo relacionado
a deficiência mental, uma vez que cerca de 70-86%
dos autistas são deficientes mentais.
Entretanto, pela penetração e abrangência dos conceitos, somos
obrigados a nos remeter ao autismo a partir de sua constelação
comportamental para que possa ser explorado minuciosamente
e para que conexões causais possam ser estabelecidas
dentro das possibilidades atuais.
Cabe lembrar que mesmo a escola francesa, com sua tradição
psicodinâmica, prefere hoje ver o autismo vinculado à questão
cognitiva.11 Lebovici (1991),12 com toda a sua tradição psicanalítica,
é textual quando diz que “para os clínicos, é uma síndrome
relativamente precisa. A referência histórica a Kanner faz da
síndrome autística uma maneira mais ou menos específica de
estar no mundo e aí formar relações atípicas”, caracterizando a
ambigüidade e a diferença das duas abordagens e mesmo da
avaliação diversa que permite enquadrarmos crianças diferentes
em um mesmo quadro nosográfico, consistindo em “emprestar
ao conceito de psicose um caráter vago”. No mesmo livro,
Leboyer13 é textual quando diz que “a confrontação das observações
clínicas e dos dados obtidos através da análise dos processos
cognitivos e emocionais permite considerar a descrição de
um modelo cognitivo anormal sustentando a patologia dos
autistas”. Assim sendo, são difíceis, na atualidade, autores, por
mais diversas que sejam suas concepções, que não considerem o
autismo dentro de uma abordagem cognitiva.
Tais fatos são exaustivamente citados por Gillberg (1990)14
quando fala que “é altamente improvável que existam casos de
autismo não orgânico”, dizendo que “o autismo é uma disfunção
orgânica – e não um problema dos pais - isso não é matéria
para discussão. O novo modo de ver o autismo é biológico”.
Considerando-se não a visão do autismo como “um dos maiores
mistérios e desafios da psiquiatria infantil contemporânea”,
conforme se dizia em meados dos anos 60, mas sim uma
síndrome comportamental definida, com etiologias orgânicas
também definidas, é que foi estruturado o presente trabalho,
visando apresentar as características sintomatológicas, as etiologias
e o diagnóstico diferencial, bem como os aspectos terapêuticos
desses transtornos.

Epidemiologia
Sua epidemiologia corresponde a aproximadamente 1 a 5 casos
em cada 10.000 crianças, numa proporção de 2 a 3 homens
para 1 mulher.15 Observa-se assim uma predominância do sexo
masculino, conforme citado por Frith (1989)16 ou pelo próprio
DSM IV,4 embora quando analisamos as etiologias prováveis,
não encontremos grande número de patologias vinculadas especificamente
ao cromossoma X, o que justificaria essa diversidade.
Refere-se ainda que quando diferentes faixas de QI são examinadas,
tem-se um predomínio ainda maior de indivíduos do
sexo masculino, chegando-se a razões de 15:1, contrariamente a
quando são avaliadas populações com QI superior a 50.
A idade usual de atendimento, caracterizando de forma clara
a dificuldade no diagnóstico precoce, confirma o descrito por
Baron-Cohen (1992):17 que a idade média para a detecção do
quadro é ao redor dos 3 anos, embora o autor sugira que o
diagnóstico já possa ser bem estabelecido ao redor dos 18 meses
de idade. Estudos realizados com grandes amostras de portadores
das chamadas psicoses infantis referem uma distribuição
bimodal, com um grupo de crianças apresentando graves
problemas já nos primeiros anos de vida, enquanto o outro apresenta
essas dificuldades somente após um período de desenvolvimento
aparentemente normal.

Desenvolvimento cognitivo
Considerando-se o desenvolvimento cognitivo, mesmo levando-
se em conta as dificuldades de avaliação (em que pese o
sugerido pela literatura internacional),19 observa-se pequeno
número de portadores de inteligência normal.
Tal fato é categoricamente enfatizado, considerando-se real
a ligação entre autismo e deficiência mental, estabelecendo-se
a noção de um “continuum autístico” em função exatamente
da variação de inteligência, com características
sintomatológicas decorrentes desse perfil de desempenho.
Isso remete-nos novamente à questão das atuais teorias cognitivas
para se pensar o autismo de acordo com os trabalhos de
Frith (1988,1989)20,16 e Baron-Cohen (1988, 1990,1991),6,21,7
questionando-se assim o conceito primitivo de Kanner e a própria
noção de psicose.
Aliás, é Baron-Cohen, em trabalho de 1988,6 que refere que
“uma das teorias propostas para o autismo é afetiva”, considerando,
entretanto, que “isso não pode ser confundido com
a noção de autismo ligada a resposta a trauma emocional”.
Entretanto, frisa que a teoria da metarepresentação é uma teoria
cognitiva que considera como fundamental a incapacidade
do autista em compreender os estados mentais do outro.
Assim sendo, os déficits pragmáticos de relacionamento social
e de linguagem seriam dela decorrentes. Considera assim
que: o autismo é causado por um déficit cognitivo central;
o déficit é a capacidade de metarepresentação; e essa
capacidade de metarepresentação é necessária nos padrões
simbólicos e pragmáticos.
Dessa maneira, pensar o autismo dentro de uma visão cognitiva
é uma possibilidade capaz de permitir sua compreensão
dentro de um modelo teórico . Por outro lado, pensá-lo dentro
de uma teoria afetiva na qual a incapacidade de interagir com o
ambiente é inata, é fundamentalmente diferente das teorias
psicodinâmicas explicativas dos mecanismos autísticos, uma
vez que somos, diante das evidências apresentadas por diversos
autores, levados a considerar a frase de Frith (1988),20 que
refere que “não há evidências de fatores psicogênicos no
autismo infantil”.
Outros estudos também enfatizam a questão cognitiva,
embora procurando funções mais especificamente comprometidas
como sendo as responsáveis pela constelação
sintomatológica.


Etiologia
A questão da etiologia é enquadrada ao DSM IV4 no eixo III,
correspondente a “distúrbios e condições físicas” e mostra as
dificuldades de quaisquer estudos a ela relativos, considerando-
se que, mesmo com acurada pesquisa diagnóstica, a
inespecificidade dos dados obtidos é marcante, embora a associação
com fatores biológicos seja indiscutível.25
Essa questão diagnóstica torna-se ainda mais complexa na
medida em que consideramos as chamadas “síndromes de
Asperger” inseridas dentro do “continuum autístico”. Em trabalho
anterior dos autores do presente trabalho,26 vários quadros
são descritos, privilegiando-se sempre as etiologias médicas, de
acordo com as propostas mais recentes da literatura médica.
Observa-se também que, enquanto grupo, pessoas autistas
apresentam altos níveis periféricos de serotonina em aproximadamente
um terço dos casos. São observadas também maior freqüência
de alterações eletroencefalográficas com quadros convulsivos
associados. Da mesma maneira, podem se observar
evidências sugestivas da importância dos fatores genéticos, embora
pense-se na multifatoriedade da etiologia do quadro.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial dos quadros autísticos inclui outros
distúrbios invasivos do desenvolvimento, como a síndrome
de Asperger, a síndrome de Rett, transtornos desintegrativos
e os quadros não especificados. Esse diagnóstico diferencial é
uma das grandes dificuldades do clínico. Os quadros de síndrome
de Asperger são reconhecidos antes dos 24 meses, apresentando
também maior ocorrência no sexo masculino, inteligência
próxima da normalidade, déficit na sociabilidade, interesses
específicos e circunscritos com história familiar de problemas
similares e baixa associação com quadros convulsivos.
Por outro lado, os quadros de síndrome de Rett ocorrem
preferencialmente no sexo feminino, sendo reconhecidos entre
5 e 30 meses e apresentando marcado déficit no desenvolvimento,
com desaceleração do crescimento craniano, retardo
intelectual marcado e forte associação com quadros
convulsivos.
Os transtornos desintegrativos são observados antes dos 24
meses, com predomínio no sexo masculino, padrões de sociabilidade
e comunicação pobres, freqüência de síndrome
convulsiva associada e prognóstico pobre.
Os transtornos abrangentes não especificados tem idade de
início variável, predomínio no sexo masculino, comprometimento
variável na área da sociabilidade, bom padrão
comunicacional e pequeno comprometimento cognitivo.


Tratamento
O tratamento é complexo, centrando-se em uma abordagem
medicamentosa destinada a redução de sintomas-alvo, representados
principalmente por agitação, agressividade e irritabilidade,
que impedem o encaminhamento dos pacientes a programas
de estimulação e educacionais .Considera-se assim o
uso de neurolépticos como vinculado, eminentemente, a problemas
comportamentais.
Cabe lembrar entretanto que, exatamente por se tratarem
de pacientes crônicos, essa visão terapêutica se estenderá por
longos períodos, exigindo dos profissionais envolvidos
monitoração constante, para que tenham uma dimensão exata
do problema.
Sob o ponto de vista psicofarmacoterápico, são utilizados os
neurolépticos, a combinação vitamina B6-magnésio,
fenfluramina, carbamazepina, ácido valpróico e lítio, visandose
sempre a remissão dos sintomas-alvo.27
Entretanto, em momento nenhum, os autores do presente trabalho
consideram a psicofarmacoterapia como opção exclusiva
de tratamento pois, ao acreditar que ela reduz os sintomasalvo,
pensam que facilite uma abordagem de cunho pedagógico,
de acordo com o proposto nos últimos anos.


Conclusões
O autismo infantil corresponde a um quadro de extrema complexidade
que exige que abordagens multidisciplinares sejam efetivadas
visando-se não somente a questão educacional e da socialização,
mas principalmente a questão médica e a tentativa de estabelecer
etiologias e quadros clínicos bem definidos, passíveis
de prognósticos precisos e abordagens terapêuticas eficazes. Com
a maior acurácia das pesquisas clínicas, grande número de
subsíndromes ligadas ao complexo “autismo”devem ser identificadas
nos próximos anos, de forma que os conhecimentos sobre a
área aumentem de modo significativo em um futuro próximo.
Referências
1. Kanner L. Autistic disturbances of affective contact. Nerv Child
1942;2:217-50.
2. Kanner L. Early infantile autism – 1943-1955. J Orthopsychiat
1956;26:55-65.
3. Ritvo ER, Ornitz EM. Autism: diagnosis, current research and
management. New York: Spectrum; 1976.
4. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders (DSM IV). Washington: APA; 1995.
5. WHO. Classificação das doenças mentais da CID 10. Porto Alegre:
Artes Médicas; 1993.
6. Baron-Cohen S. Social and pragmatic deficits in autism: cognitive or
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8. Misés R. Classification française des troubles mentaux de lénfant e de
l’adolescent. Neuropsychiatrie de l’enfance 1990;38(10-11):523-39.
9. Houzel D. Reflexões sobre a definição e a nosografia das psicoses.
In: Mazet P, Lebovici S. Autismo e psicose na criança. Porto Alegre:
Artes Médicas; 1991. p. 31-50.
10. Burack JA. Debate and argument: clarifying developmental issues in
the study of autism. J Child Psychol Psychiatr 1992;33(3):617-21.
11. Lellord G, Sauvage D. L’autisme de lénfant. Paris: Masson Eds.; 1991.
12. Lebovici S, Duché DJ. Os conceitos de autismo e psicose na criança.
In: Mazet P, Lebovici S. Autismo e psicoses na criança. Porto Alegre:
Artes Médicas; 1991. p. 11-9.
13. Leboyer M. Neuropsicologia e cognições. In: Mazet P, Lebovici S.
Autismo e psicoses na criança. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991.
p. 95-101.
14. Gillberg C. Infantile autism: diagnosis and treatment. Acta Psychiatr
Scand 1990;81:209-15.
15. Volkmar FR, Klin A, Marans WD, McDougle CJ. Autistic disorder.
In: Volkmar FR. Psychoses and pervasive developmental disorders
in childhood and adolescence. Washington: American Psychiatric
Press; 1996. p. 119-90.
Concomitantemente, o desenvolvimento de vias de pesquisa
biológica e cognitivas deve trazer futuras implicações
não somente na questão diagnóstica mas, principalmente,
na questão terapêutica da síndrome.
A descrição de casos e o estudo das populações afetadas
contribui, de forma efetiva, para que pouco a pouco o autismo
possa ser melhor compreendido e analisado.
Somente a partir de uma visão médica, embasada em modelos
científicos claros, é que poderemos contribuir para o
estudo da questão, ao mesmo tempo em que nos dispomos a
pensar realisticamente o problema dessa população afetada.
Correspondência: Ana Cristina Mageste Pimentel
Rua Engenheiro Carlos Antonini, 148 Bairro São Lucas – 30240-280 Belo Horizonte, MG
16. Frith U. Autism, explaining the enigma. Oxford: Blackwell Pub.; 1989.
17. Baron-Cohen S, Allen J, Gillberg C. Can autism be detected at 18
months? British J Psychiatr 1992;161:839-43.
18. Volkmar FR, Bergman J, Cohen DJ. DSM III and DSM III-R diagnoses
of autism. Am J Psychiatry 1988;145:1404-8.
19. Barthelémy J, Adrien JL, Bouron M, Sauvage D, Lélord G. As escalas
de avaliação no autismo da criança. Aspectos metodológicos e
aplicações clínicas. In: Mazet P, Lebovici S. Autismo e psicoses na
criança. Porto Alegre: Artes Médicas;1991. p. 51-61.
20. Frith U. Autism: possible clues to the underlyng pathology.
Psychological facts. In: Wing L. Aspects of autism: biological research.
London: Gaskel Eds. & Royal College of Psychiatrists & The National
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21. Baron-Cohen S. Autism, a specific cognitive disorder “mindblindness”.
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23. Happé FGE. Wechsler IQ profile and theory of mind in autism: a
research note. J Child Psychiatr 1994;35(8):1461-71.
24. Jarrold C, Boucher J, Smith PK. Executive functionb deficits and the
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1994;35(8):1473-82.
25. Steffemberg S. Neuropsychiatric assesments of children with autism: a
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26. Assumpção Jr. FB. Autismo infantil: um algoritmo clínico [tese de
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27. Gillberg G. Autism and pervasive developmental disorders. J Child
Psychol Psychiat 1990;31(1):99-119.

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