silvânia mendonça almeida margarida
bhz, 28 janeiro de "2021"
Eu
poderia dizer que já aprendi tudo sobre o autismo.
Eu poderia afirmar que já sei o que é rotularizar meu filho, nossos filhos, que
segue vida afora, balançando suas mãos, cantando canções infinitas, um “iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”
que na sua linguagem de autista deve ter mil significados.
Bater palmas
infinitamente, balançar o corpo, andar de um lado para outro até os pés
ferirem, abrir e fechar catálogos de telefone, num ritual dantesco que afloram
novas ideias. Empilhar cartas de baralho, arrancar as unhas de tanto as mãos
terem que rodopiar o objeto na velocidade da emoção sentida. Ou mesmo, subir
quatro andares, arrumando os tapetes dos vizinhos, tocando a campainha em todas
as casas e eu “infinitamente” pedindo perdão, desculpas: “ele sabe ou não sabe
o que faz”.
Outras tantas vezes, abrindo e fechando as portas, as janelas, os
armários, mas nunca meu coração. Roupas dependuradas no varal sendo guardadas
sem passar e eu sem saber onde colocou os uniformes e a roupa das pessoas
residentes. O fogo é um atrativo. É necessário
vigiar fogão, ferro elétrico, tostadeira, forno micro-ondas, tudo que pode
queimar. Foram e são longas experiências.
Eu
poderia categoricamente afirmar que a exclusão
da diferença dá grande forte dor no peito, sobe até a cabeça, como uma
cantiga que nunca vai parar, mas que é para se enfrentar.
Eu
poderia proferir que a ausência da linguagem, o hiperterolismo, a dislexia, a
disgrafia, fazem parte da linguagem popular do autismo do meu filho, e que se
precisar discutir, pautar sobre o assunto, lá estarei eu, como uma grande mestra do
assunto.
Também
poderia pronunciar, talvez, que sei conceitos mais simples, como oferecer um
copo d'água ao meu filho autista, como também analisar seu funcionamento
intelectual, sua cognição bem abaixo da média, seus trejeitos, seus “olhares
infantis”, um rapaz com a cabeça de criança, seu modus vivendi, sua segregabilidade e a sua falta de interação
social.
Qual
pai ou mãe de autista que não ouviu falar nas famosas e intricadas estereotipias. Uma motricidade perturbada
pelas ações intermitentes ou contínuas de seus movimentos repetitivos e
complexos. Com o tempo se nota a falta
mais triste, aquela que qualquer pai ou mãe espera do seu filho: o sorriso social, a amabilidade, o toque
com as mãos, os abraços, o aperto de mão no momento da angústia. Sentimentos
nunca são demonstrados. O que se nota é um eterno isolamento.
Como se o corpo
físico não estivesse unido ao corpo mental, que esse, sucessivamente, não desse
retorno ao corpo espiritual. Difícil explicar. Só uma doutrina consegue.
Eu
poderia postular que já percebi mudanças positivas a partir do divórcio entre
as mais variadas definições comportamentais e os critérios que evidenciassem
comprometimento orgânico, ou, quem sabe, tais critérios poderiam ser
subjetivos.
O
mais interessante de se notar nesta minha experiência transcendental é que já
me peguei, realmente me peguei, muitas vezes, variadas vezes, dizendo ao meu
filho: “André busca um prato pra mim”, ou “André, atende a porta” , e o mais crucial, “André Luís Rian, faça-me o
favor de atender ao telefone”.
EU
SIMPLESMENTE ESQUECIA. Por que esquecia? Eu esquecia por não me lembrar. Não estou
dizendo que esta seria uma válvula de escape, como se diz por aí à busca de rótulos e significados para a síndrome de autismo. Não e não. Eu
esquecia porque esquecia.
Eu
poderia proferir que muitas das respostas nunca vieram. André Luís nunca soube
atender ao telefone, abrir a porta, atender ao interfone, simplesmente porque é
ele. Mas aprendeu a buscar pratos! A fazer o acholatado! A cantar! E tantas
outras coisas positivas de um tratamento severo, construtivista, inclusivo,
amoroso. Aquele tratamento que você fecha os olhos e se pergunta: o que me
falta fazer pelo meu filho? Aprendeu a dançar,
participar de festas e se comportar adequadamente, vestiu terno na formatura da
irmã, vai tomar sorvete com os cunhados, sabe o nome deles, como também de
todos da casa.
Mas
eu posso dizer que a sua deficiência continua lá, entre o seu íntimo e seu novo
íntimo. Sorrateiro e engraçado. Quando quer algo, joga beijos, abraça e pede
com as mãos, puxando-me para local requisitado.
Autismo?
Rótulo ou síndrome à espera de um significado? Que significado? Qual é esta
síndrome que o mundo desconhece? Nos dizeres de Gauderer, um mundo que deve ser
construído para ele e por ele, tijolo por
tijolo. Como se quisesse entabular: “põe-te de pé e continua”. Você é mãe!
Na
evolução educacional, Piaget considerou impraticável descobrir um comportamento
proveniente da afetividade, sem nenhum elemento cognitivo. É igualmente
impossível encontrar um desempenho composto só de subsídios cognitivos... Embora
os fatores carinhosos e cognitivos sejam indissociáveis num dado comportamento,
eles parecem ser diferentes quanto à natureza. É óbvio que os fatores afetivos
estão abarcados mesmo nas formas mais abstratas de inteligência. Mas eu poderia
me perguntar. O quanto de inteligência
envolve a afetividade?
Poderia afirmar que a afetividade é componente
permanente da ação autista a ser ganha e se deve entender como emocional também
é um estado de serenidade do lado materno/paterno. O desvendamento dos
desencadeadores dos conflitos é condição basilar para se entendê-los e
administrá-los devidamente. A solidão social, o encontro com o outro
interacional, é a ênfase dada ao caráter social da educação. Nesse sentido, a
grande lição para os educadores é a de que não é na solidão do autista que os
processos de desenvolvimento e de aprendizagem ocorrerão. Mas no encontro
dialético com o outro enquanto sócio inseparável do eu. A desistência é a pior
síndrome que alguém pode rotular, que alguém pode empreender.
“A visão consumista de mundo imprime, na
sociedade, um movimento de exclusão, de descarte e de valorização da
praticidade, que acaba por encobrir a necessidade humana de se apegar ao
conhecido para poder transformá-lo em algo novo”. Não podemos incomodar a nós mesmos.
Os políticos de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro
entendem assim. Nestas duas cidades, recentemente, o Estado negou os direitos das garantias
fundamentais, descritas na Constituição. Muitos outros negarão. A Carta Magna e
Pactuada na Declaração Mundial dos Direitos Humanos de nada vale para autistas.
Quiçá para outros com outros tipos de deficiências. Realmente é a exclusão da diferença e da diversidade. Este é um outro
tipo de desistência, à espera de um rótulo, de um significado do que seja a
síndrome do autismo. Não há um cerceamento de amor e organização.
Eu poderia evocar que escrever não adianta nada!
Ninguém lê, ninguém analisa, e as elites políticas e majorais deste país
caminham de encontro ao túmulo. O que se encontra do outro lado, ninguém sabe. Nunca
ouvi sequer um murmúrio de que alguém estivesse levando suas riquezas e
falácias para a Vida Eterna. Só eles saberão. Mas é dito que a Justiça Divina
não falha.
No que tange a mim, preciso
fazer da minha parte, pois não sou a palmatória do mundo. Eles são eles e que
se entendam com o Criador...
E, assim, vou traçando as esperanças. Preciso compreender “meu filho” muito mais, e mais e mais. Meu filho, meu lindo filho. Amado e meu
companheirinho de estrada. A partir de um enfoque multidimensional, que
amalgame fatores orgânicos, cognitivos, afetivos, sociais e pedagógicos,
percebidos dentro das articulações sociais, que traçarei para ele, como sua
tutora espiritual.
O André é apenas um exemplo carinhoso do que pode servir de
estudo para outros. Claro que as evidências são intensas. Há aqui uma troca.
Aprendo com ele e transmito por ele. Que me importa os rótulos do autismo, de
uma síndrome misteriosa, mas que professa muitas verdades, em busca de
significados pedagógicos, mas também de eterna aprendizagem horizontal/vertical. Quero aprender o rótulo do amor,
da consciência limpa e politicamente correta.
Como
diria o filósofo grego: “Só sei que nada sei”.